Transparências sobre a esteira do tempo

Olhava quase todos os dias pela janela de madeira do canteiro de obras

as sobras da infância rica que tive e via as máquinas brutas,

o ferro duro dos vergalhões marrom retorcidos de tanta ferrugem

e o barro impregnado na face cruel dos operários insensíveis a manuseá-los.

Centímetro por centímetro me era tirado o bairro...

A cada pedra removida sem o nosso consentimento

a cada campinho de terra extirpado das nossas brincadeiras

a cada lote brejeiro expurgado pelos drenos.

Aterraram as minas d’água, drenaram a bica que ali existia.

No lugar do lago hoje existe uma larga avenida,

dois postes de iluminação que nunca funcionaram

e um vazio enorme,

do tamanho das memórias que nos foram cerceadas e abreviadas.

Acabou.

Não há mais chão pra fincas,

nem campo para as peladas,

nem toco novo pra estrear.

Não há mais argila pra desenhar o garrafão,

nem nuvem no céu pra fantasiar.

Não há mais polícia e ladrão...

Na verdade, só há polícia e ladrão agora.

Mataram o pé de manga da Vó,

cortaram o pé de goiaba em frente ao lote vago.

Esticaram fiação e fibra ótica por todos os cantos,

ninguém mais solta papagaio por aqui.

Os carros passam tão rápidos pela rua,

que outro dia quase ocorreu uma tragédia.

Estiquei uma rede no tempo e fiquei ali deitado

balançando sob a sombra da mangueira (que não existe mais)

lembrando das peraltices da infância,

lembrando de como era bom ser criança,

olhando as formigas trabalhando duro

e marchando galha a galha num pé de árvore qualquer,

enquanto as cigarras cantavam “aquelas” canções irritantes e insalubres.

Contando as pintas brancas nas unhas

pra saber dentre nós qual a criança mais sortuda,

quanto mais pintas brancas nas unhas mais afortunada era a criança,

assim diziam os mais velhos.

O Valdeir, Baunilha, sempre ganhava todas as competições de pintas nas unhas,

de manchas na cara e de vermes pelo corpo.

Os parasitas existentes no ambiente adoravam as crianças da nossa época,

colecionávamos lombrigas e bichos de pé.

Olhando para o passado,

claramente veem-se as mudanças substanciais ocorridas no bairro

que de tão transparentes,

não deixam dúvida sobre o impacto da esteira do tempo em seu agir desmedido.

Sobre o agir do tempo impactando vidas, delineando a história e determinando caminhos.

Sobre o agir dos homens deformando estórias, delimitando memórias e encerrando ciclos.