Tudo o que via embaçava
Só o nosso olhar brilhava
Da mais profunda tristeza:
Quanta conta acumulada
Na mercearia da esquina!
Se brilhava na cabeça
O fulgor de uma ideia
Derrubavam-nos a porta
Arrastavam-nos à força
Para a prisão, a tortura.

Por fora o que brilhava
Era a glória abestalhada:
"Como vai V.ª Excelência?",
E o tolo e o parolo
Lambuzavam-se um ao outro

O Povo amarfanhava um lenço
Salgado, acenando ao filho
Do cais de onde um navio
O levava para a guerra.
Que guerra? O rádio dizia
Que os "terroristas" nas matas,
Usurpavam as Colónias!

Nos tempos da brilhantina
Eu, de vestido engendrado
De outros postos de lado,
Cozinhava, lavava e cozia
E depois de ser espancada
Com o cinto do polícia
Ia adoçar limonada
A que vinha habituada
De Angola, a minha madrasta.

Quando enfim me recolhia
Mergulhava na leitura
Embrenhava-me na escrita
Escutava a voz clandestina
Vinda do Norte de África
Onde pela madrugada
A Resistência bradava
E os horrores desvendava
E as mentiras mostrava
E os nossos versos lia

Anos dourados se havia!

Nesta Nação de impostura
Para dois em quadros na aula
De cada lado da lousa,
Com a cara inexpressiva.

No meio, um Cristo pregado
Mantinha-se angustiando
de nos ver sofrer tal vida!