Retirante sonhador (2) - Chagas na cidade

Amanhece a serrania,

O céu escuro ganha uma cor;

O andante, novamente à companhia

Do seu olhar, que à noite se apagou.

O brilho longe vê

De vida humana que lhe carece:

Porto seguro que pode ser,

Ou esgoto o mundo que ele tece.

Uma cidade com céu sombrio

E escuro o piso em que se assenta,

O vento farpado de frio,

O tremor da fome que se apresenta.

Rosto flatulante de nojeira

Dos restos pobres que se alimenta,

Ou pálido da cegueira

Da comida que lhe ausenta.

Mazelado, percorre as ruas

Sem no amanhã acreditar;

Suas dores o seguem nuas,

O flagelo a o anunciar.

Só os trapos o revestem

E o distinguem da natureza,

Mas incapazes, não o protegem

Do olhar-lhe lançado de incerteza.

É desprezado em sue teor

E nem sequer mais o recordam;

Para a história não tem valor,

Aos homens, feridas que se morgam.

O teto de sua morada

É a noite sem estrela;

E sua cama privada,

Só a lembrança vem trazê-la.

Pois é o barro que lhe cobre

Enquanto inspira à madrugada:

A amônia, que se descobre:

Lhe deixa a alma envenenada.

Já passa da madrugada

E o silêncio é perturbado,

Sirenes em revoada,

Enterram outro triste condenado.

Morte, talvez seu crime

No suburbano já tão comum

Pelo medo que o reprime,

O deixa assim, sem sono algum.

Se não amanhece com a aurora

Se a dor lhe quita em tarde noite,

O desespero toma-lhe a hora

E, perdido, as sombras mostram seu açoite.

As figuras noturnas o apavoram,

Não lendas nem conhecidas,

São sofrimentos que devoram,

Carne e alma oferecidas.

Sua relutância em ser desperto

Se esvai logo ante um desmaio;

A dor é um leito aberto

A chamá-lo agora, numa nascente de maio.

Quando desperta, já é claro,

A cidade se levantou,

Em névoas, o cenário

Que faz horas o silenciou.

Seu sono já longe voa:

Reprincipia sua sina,

O tempo ido não mais ecoa,

O mundo jaz além de uma esquina.

Cruza um vasto bosque verde

Frutosa a altura em seu domínio,

A paisagem que à mente aplaca a sede

Presa entre a modernidade de espinhos.

A sombra do afresco dos pomares

É ora áurea pelas vidraças refletidas;

E o som nas ronronosas gares

Soa chegadas e despedidas.

Sente a campana como um sinal

De que precisa ir embora;

Uma terra o chama ao final

De um olhar perdido à hora.

Novamente, o chão trovoa

Ante uma passada mais firmina;

Ao sonhador, o repovoa:

O jugo de sua vida severina.

Vitor Barros
Enviado por Vitor Barros em 14/08/2005
Código do texto: T42585