CANAVIAIS E OS BÓIAS-FRIAS



Quatro horas da manhã,
O meu corpo está muito fraco,
Sinto dores nas minhas costas,
Ainda estou com sono. Levanto-me.

Acordo a minha mulher Mariana,
E os meus três filhos menores,
Bebemos bastante água do pote,
Antes de sairmos para o inferno.

A gaiola está balançando,
O motor está roncando,
Aguardando a nossa chegada,
Um caminhão com grades.

Com aparência de uma jaula,
Numa enorme carroceria de madeira,
É o nosso meio de transporte e trabalho.

É uma vida triste naquele gaiolão,
Vamos viajar quarenta quilômetros,
Na poeira do grande sertão sem distinção.

Estamos na mesma gaiola, sentados,
Entre vários trabalhadores, são bóias-frias,
De uma fazenda de quinze mil hectares.

É o sertão que parece um mar,
Um mar de canaviais,
Com muita sede e fome, é a marcha.
Num rojão duro e pesado, é barra,
Cortando cana às vezes bambus,
Sem folga e sem descanso, é forçado.

Sem proteção de nada, ainda vivo,
Apenas com as nossas roupas,
Já velhas e esfrangalhadas da labuta.

Lá, estão os meus três filhos,
José com sete anos de idade,
Guri – Que um dia vai ser doutor,
Raimundo com oito anos,
E Antonio de dez anos, o cantor.

Eles são os pequenos trabalhadores,
Que não tiveram sorte na vida,
Nunca tive condições manter uma família,
Eu falo de uma família decente,
Sou culpado de não possuir nada na vida.

Meus pais eram pobres, é a chaga,
Nasci e me criei na caatinga,
Fazendo roça até quando apareceu a seca.

O que posso oferecer aos meus filhos?
É somente o amor e o respeito,
Retrato da nossa convivência.

Estamos navegando no mesmo barco,
Pai, mãe e filhos,
Sentimos as mesmas dores,
E suportamos calados.

Crianças descamisadas,
Pálidas e com bronquite,
Que mal suportam segurar um facão,
Cortando cana-de-açúcar outrora bambus.

Não sabíamos que éramos escravos,
Além de tudo, somos humilhados,
Pisoteados pelos gerentes da fazenda,
Maior Industria Canavieira do Nordeste.

Se o curumba não trabalhar depressa,
Não permanece na fazenda,
E nem recebe os dias trabalhados.

Um serviço de semi-escravidão,
Que existe nas matas do nordeste,
Talvez! Quem sabe! Oxalá!
Amaldiçoado por Deus.

Não podemos trabalhar juntos,
Cada qual fica num talhão de cana,
Não podemos conversar e nem descansar,
Não podemos sorrir ou cantar,
Temos que trabalhar calados.

A farinha de puba com rapadura,
É a nossa alimentação e benção,
Sem água pra beber das cabaças,
É proibido, ordem expressa do patrão.

Os homens de fuzis e espingardas,
Estão sempre de olhos abertos,
Nos dão água de um tambor de ferro,
Que fica no tempo com água enferrujada.

E temos que beber para não morrermos,
E ainda agüentar uma comida estragada,
Em vez de crédito naquela fazenda,
Somos todos grandes devedores.

Todos, todos foram enganados,
Com promessas de bons salários,
Carteira de trabalho assinada,
Farta alimentação, moradia,
E assistência médica integral: pura ilusão.

Não existe nada do que falaram,
Achei que tudo fosse verdade,
Pensei em melhoria de vida,
Estou me acabando nesta agonia.

É tudo escravidão e humilhação,
Somente promessas e promessas,
Eu e meus filhos, não somos gente,
Espalhados no meio daqueles canaviais.

É triste vivermos neste pedaço de Brasil,
Neste Brasil desconhecido dos grandes centros,
Onde somos agregados ao trabalho contínuo.

Labor aviltante com desrespeito as nossas vidas,
É melhor morrermos pra esquecermos esta dor.

No mês passado, o meu filho morreu,
Sem qualquer ajuda ou assistência,
Arrastou-se no meio do canavial,
Gritando e pedindo socorro.

O menino ferido gritava por sua mãe,
Ouvi o seu grito há mais de mil metros,
Larguei tudo e ainda fui alvejado,
Com um tiro de espingarda.

Sem medo, sair disparado pelo canavial,
Logo, avistei o menino no chão desmaiado,
Debaixo de um pé de sucupira,
Um grande golpe na perna direita.

Lagoa de sangue ao seu lado,
Eu gritei, gritei por socorro,
E ninguém no canavial me ouvia,
Pedi ao padrinho Cícero essa salvação.

Gritei pelos outros filhos!
E sua mãe chegava aos prantos,
Caindo ao solo.

Aquele desgraçado capanga,
Aproximou-se e nada disse,
Perdi e implorei de joelhos,
-Leve o meu filho pra cidade.

Olhou-me o capataz com a arma na mão,
Revirou o meu filho com o pé direito,
Como se fosse um animal.
Mandou-me que enterrasse numa cova rasa
E partiu no jipe, ainda sorrindo.

Amarrei a perna com a minha camisa,
Rasgada e muito suada,
Andei mato a dentro até chegar no escritório,
Cansado, percorrendo mais de quatro mil metros.

Ao chegar naquele escritório,
Implorei ao gerente até pelo amor a Deus,
Que arranjasse um transporte rápido,
E salvasse a vida do meu filho,

Sorridente, afirmou não ter combustível,
E que o menino já estava morto,
Coloquei o menino nos meus braços,
Apressei os meus passos e fui pra beira da estrada.
Há mais de cinco quilômetros de distância.

O coração ainda batia, batia, batia,
Os olhos entreabertos, me diziam:
-Salva-me papai! Salva-me papai!
Eu chorava correndo entre os canaviais,
Rasgando trilhas, eitos, talhões e lameiros.

Sem demora, um chevette preto,
Placa do Rio de Janeiro, ali parou,
Deu-me uma carona abençoada,
Levou-me até à cidade de Caxias.

Aquele homem não teve medo,
E muito menos vergonha em sujar os bancos,
No hospital, este ordenou urgência,
Sem ao menos saber a sua procedência.

De tudo ele fez pra salvar a vida do meu filho,
Mas a tristeza batia nos meus olhos,
Quando olhei em seu rosto,
Que o meu filho havia partido.

Palavras confortáveis e amáveis,
O homem pronunciava com harmonia,
Abraçando-me na dor que rasgava o peito.

Numa certa noite, ele me visitou,
Na frente de minha casa de palha, ali parou.
Não se acanhou de tomar um cafezinho,
Daí, contei a vida da minha família.

Falei das condições do trabalho na fazenda,
Sem carteira assinada e nas condições hostis,
Ainda estamos sofrendo naquele canavial,
Somos mais de quatrocentos homens sem almas.

Falei daquela maldita empresa,
Que só paga um real por tonelada,
Temos que cortar mais de quinze toneladas por dia,
Tudo, tudo aquilo é uma grande covardia!
O usineiro só quer pagar por produção.

Na queima da cana é que sofremos mais,
Por isso temos que correr apressado,
E tudo gera excesso de horas e trabalho,
Cortamos às vezes mais de vinte toneladas.

Não sabemos o peso,
O patrão diz sempre que foi menos,
A balança leva agente pro buracão.
Quando faço dois eitos, fico cansado,
Sem ritmo e sem resistência física.

Aqui não podemos medir os nossos trabalhos,
O controle de pesagem é só aos olhos do usineiro,
Seria bom se eu pudesse medir por metro,
Aferindo tal medição, sei que não sou enrolado.

Levando toda a cana cortada, é só embromação.
A balança deles jamais foi aferida, tudo é trapaça,
Por isso não querem a cana por medição,
E tenho que aceitar calado esta ingratidão.

Cortando a cana rente ao solo,
Ainda tenho que cortar a ponteira,
Na parte de cima, estão as folhas verdes,
Que não tem sacarose, não serve pra usina,

Olha moço! Trabalhar por produção é desumano,
Agente tem que se acabar de trabalhar.
Trabalhamos mas pra melhorar de vida
E isso nunca acontece no canavial.

É perverso trabalhar dessa forma,
Já trabalhei por metro linear,
Já cortei mais de trezentos metros,
O Usineiro jamais fala quanto é o metro.
Afirma que só depois de pesada toda a cana.

Aí onde danço naquela balança miserável.
Essa conversão matemática deles, só dá ladrão.
E ainda falam que minha cana cortada era fraca,
Cana de soca de pouco peso. Veja que ingratidão!
Eu vou falar o quê? Dizer o quê?

Não sabemos quanto vamos ganhar,
No meio da fumaça, fuligem e poeira,
Gasto energia andando de um lado pro outro,
E Golpeando e agachando o dia todo.

Levando a cana nos braços,
Ao céu aberto sob sol ardente,
À noite dá câimbras nas pernas,
O tórax se racha todo em dores.

Olha doutor! Nem boné nós temos,
Muito menos camisa de manga comprida.

Mangote, agente faz pra levar a cana nos braços,
O gerente fica todo alegre,
Anda sorrindo quando bate recorde de produção,
E os homens, infelizes naquele infernal.

Aliciados pelos “gatos”,
E muitas vezes pagam pelas vestes,
É regime de semi-escravidão.

Saiba que naquela usina quando é fiscalizada,
Ninguém trabalha, ficamos escondidos no mato,
Os capangas mandam agente se esconder,
Às vezes, o fiscal permanece com o patrão,
E por lá é comprado, acertado e vai embora.

Aqui em casa todos trabalham,
Só dá menos da metade do salário,
E ainda descontam do nosso pagamento,
INSS, FGTS e contribuição sindical,
Sem possuirmos nem carteira assinada.

O patrão vem se enriquecendo,
Com o nosso suor e sangue,
Morando na Vieira Souto no Rio de Janeiro,
Outrora em Nova York e Dubai.

Temos medo de denunciar,
Os maus tratos e as explorações,
Por isso, ficamos calados.

Agora, já conheço os meus direitos,
E vou fazer valer todos os meus direitos,
A minha luta não termina aqui,
E suas palavras me deram coragem.

Pode contar a minha história,
Publique o meu sofrimento,
Não mencione o meu nome,
Muito menos o nome da empresa,
Tenho medo de morrer de emboscadas,
Mostre para ao mundo e a todos os brasileiros,
A minha miséria e de todos os companheiros.



Escrito em - 14/07/1988 - caso verídico.


ERASMO SHALLKYTTON
Enviado por ERASMO SHALLKYTTON em 21/09/2007
Reeditado em 04/10/2011
Código do texto: T662806
Classificação de conteúdo: seguro
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