O HOMEM
Desvie, se afaste, mude de rua, troque de nome, escape pelos fundos, salte os muros, se esconda no porão, mude a forma do rosto, troque as digitais, não use as mesmas roupas, não responda ao cachorro, mude de profissão, suspenda o analista, não vá ao dentista, evite os amigos, não vá ao bistrô, não ande de ônibus, não use metrô, adote o silêncio, se finja de mudo, derrube a casa, venda o sítio, não ande no bairro, não mais telefone, esqueça o lixeiro, use só luvas, abaixe a cabeça, encolha os ombros, apague vestígios, não assine notas, não pegue em dinheiro, esqueça os convites, não vá ao cinema, não olhe pros lados, durma de pé, não coçe a cabeça, beba só água, coma bem pouco, doe seus óculos, mastigue mil vezes, ande sem meias, esqueça os jornais, não vá a enterros, evite parentes, compre à vista, não faça turismo, reze calado, não pague pedágios, aceite os piolhos, declare-se impotente, não compre ações, fuja dos raios, apague as luzes, cabule as aulas, não marque encontros, não use Internet, não pare em sinais, não responda a acenos, rompa contratos, negue seus vínculos, amorteça afetos, seja invisível, concorde com tudo, arranque os dentes, decepe um dedo, se esconda na mata, rasgue o registro e, se depois disso tudo ainda sobreviver, morra em silêncio, calado, latente, na lápide, tente escrever o epitáfio com giz ou com garfo, escreva em vermelho,
alguém o lerá, aqui jaz um homem, leitor e foi lido, ali, logo ao lado, outro homem estará, sorrindo, suado, te lendo, calado, querendo saber como foi que viveu acreditando que viu a criação espontânea da mãe natureza, o homem, certeza, não foi o que viu, apenas a sombra do que poderia ter sido, a sombra dos deuses como árvore aberta, discreta passagem entre a certeza errada e o erro que acerta, soletre de novo o principio do ovo, o homem, o homem, o homem, o homem, foi só uma miragem nas íris cansadas de tantas viagens.
Preto Moreno
Preto Moreno
Enviado por Preto Moreno em 17/03/2006
Código do texto: T124440