TALITA COME

Acordou sentindo-se torpe. Seus cabelos sobre o travesseiro revelavam o intimo confuso que escorria em meadas sobre o tecido úmido de suor e lagrimas. À noite não fora gentil, o sono não cumprira o seu papel e todo peso do mundo sentiu desabar em suas costas ao colocar os pés no chão. Ameaçou levantar, mas sentiu um temor que emanava do centro da terra passando pelos pés e atingindo o alto da cabeça, um medo paralisante, medo de que ao levar as mãos ao rosto percebesse toda desfiguração que sentia por dentro, exteriorizando em sua face toda miséria humana que havia engolido na noite anterior. Toda sorte de invejas, intrigas, maldades, maledicências e tantos outros dissabores ela havia comido, devorado, vomitado e novamente engolido, fora assim madrugada adentro. Seu estômago parecia um vulcão, não suportou olhar o quadro que ficava do lado de seu espelho: “domingo no parque”! Exclamava, na medida em que ia lançando pela boca toda sua lava de repugnância e asco pela mesma humanidade que a alimentara. E foi assim, séculos e séculos repetindo o mesmo asco.

Quando caiu a primeira pela da ultima criança do parque pensou: “É somente um quadro” disse ela aos seus dedos, que agora já tocavam em seu rosto fatalmente desfigurado, e chorando, foi se despindo lentamente, como se a liberdade fosse um produto cujo segredo bastaria retirar os rótulos para conhecer, mas, se sentiu feia, pois havia ingerido toda a idéia de beleza, estética, padrões e formas que a humanidade cultua, e chorou por séculos e séculos. Com os olhos inchados e cinzas recordou da viagem que fizera enquanto se acabava em prantos, pode ela ver a si mesma enquanto chorava. “Éramos três” disse-me ela. “Estávamos todas tristes”. Como se não bastasse sua própria mácula também as suas iguais estavam entorpecidas. Mas ela não se importava, de tanto engolir o mundo passou a não ver mais ninguém, chorar ela sempre chorava, mas escondido, às vezes para o quadro, outras para o espelho. “Choro nua” disse um dia. “Adoro ver as lagrimas caírem no meu corpo”. Incrivelmente eram quentes as gotas que escorriam dos seus olhos, faziam uma espécie de musica quando tocavam o corpo frio, alem de molharem por dentro e por fora, faziam com que ela sentisse uma espécie de desejo, e então, gozava por séculos e séculos. Mas depois se sentia triste, pois havia bebido muito pudor e moral que os homens vendiam debaixo de suas janelas e ressecada de sentimentos expelia toda culpa e hipocrisia geradas em seu estômago. Foi assim séculos e séculos antes dela deitar-se novamente com seus cabelos e sonhos, e sentir o sopro da maldade em seus ouvidos enquanto fingia dormir. Ainda hoje pode se ouvir seus lamentos debaixo do cobertor, ninguém a vê, ninguém a toca, nós simplesmente a alimentamos.

Tiago Branco
Enviado por Tiago Branco em 01/12/2008
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