OLHARES PERDIDOS E ACHADOS

Jamais amarei

uma mulher de olhos borrados

mesmo na contraluz

das sombras passadas.

A mulher de olheiras grandes,

espichadas até quase a metade do rosto,

carrega na lembrança a saudade da orquestra

e a dança que, pelo salão, flutua a passos vivos.

A mulher dos olhos borrados

traz do infinito um azul não definido

que não é do horizonte nem dos azulejos

resfriados em costas tristes. Estatelado, o olhar

da noite fugirá sombrio para o dia distante.

Jamais amarei

uma mulher de olhos molhados

mesmo com desejo

das bolachas de água-e-sal.

A mulher de corpo encharcado,

desenhado na toalha, antes até do banho,

sua pelos poros um inesquecível choro crônico

e, pelas pernas, coxas secam temendo outro passo.

A mulher de olhos cabisbaixos,

escassa em sabonetes e manhãs,

levará o amante para um curto suicídio

no choque do chuveiro elétrico. Ardida, a tortura

do olhar desalmado pingará gota após gota.

Jamais amarei

uma mulher de olhos vazios

mesmo na estranha

cor indefinida do medonho.

A mulher de mãos sem carinho,

desajeitada em tocar, mesmo com requinte,

cria um mapa imaginário na colcha amarrotada

e, entre os dedos eretos, recria a vazia excitação.

A mulher de olhos sedentos,

distante do sol polar da meia-noite,

trepará com o sonho inverossímil

dos corpos desacordados. Carente, o absurdo

do olhar acorda para lhe masturbar.

Jamais amarei

uma mulher de olhos distantes

mesmo sem os reclamos

do ausente arrepio na espinha.

A mulher de braços gigantes

jamais saberá nadar por todos oceanos,

nem poderá unir terras ou continentes separados

mesmo se a cama curta, um dia, trocar a fala da língua.

A mulher de olhar sem nada,

a incansável atenta para o infinito,

atracar-se-á ao veleiro do cais

salvando náufragos. Horizontal, o olhar

ausente naufragará esperanças.

Jamais amarei

uma mulher de olhares muitos

mesmo com o encanto

da multiplicidade dos flertes.

A mulher que enxerga demais

dissolverá os anéis e os compromissos

penhorará os sentimentos para os seduzidos

e jurará, de mãos juntas, ser a santa da separação.

A mulher de olhar frenético,

a insaciável mulher em comichão,

violará os selos guardados

dos mistérios pequenos. Curioso, o olhar

devasso, sem graça, matou o segredo.

Amarei, sim,

qualquer mulher de olhar perdido,

qualquer mulher de olhar desesperado,

onde eu possa me achar sem alucinação.