Transição
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É uma noite umbrosa a vomitar sensações ímpares,
Seguida de uma madrugada de distinta singularidade,
Daquelas que todos os seres obscuros parecem sair
De uma só vez, se atropelando e rosnando desvairados,
Na pressa para se refestelarem do seu cotidiano de trevas –
Em que se acentua a distinção entre presa e predador.
Mas não é o externo que me incomoda, tampouco a noite,
Visto que, por mais intenso que seja o negrume exterior,
Após certo tempo e adaptação, vem o cinza substituí-lo.
Há uma escuridão maior... Uma imaculada indiferença,
Que transforma o todo em nada e faz do simples existir
Algo indizivelmente sem sentido.
É nesta incólume e crescente abstração, que sou flagrado
Pelos primeiros raios dilúculos, que despontam atrevidos
E tingem o céu de um inexpressivo prata pálido-opaco.
Meu corpo imóvel faz parceria com os olhos arregalados,
Porém, não denuncia a sôfrega busca interna por algo
Que possa fazer algum sentido nestes recantos invisíveis.
O frescor matutino é indiferente ao meu interior,
Que, gélido, permanece apático, plácido e imutável
Neste inóspito limbo vazio, aparentemente infinito.
Seria de me assombrar – se eu ainda possuísse tal dom –,
Pois os intangíveis fantasmas que habitam este éter,
São inúmeros e inominavelmente abomináveis.
Meus olhos secos e escancarados vêem o céu prata, que –
Através da porta aberta – já acentua um brilho azulado,
Tal qual se polido por zelosas mãos invisíveis.
Mas inexplicavelmente continuo cego para a beleza,
Como se algo vindo de não-sei-onde neste vazio imenso,
Mantivesse meu coração aquietado nas sombras.
Da minha anestesiada visão de vegetativa placidez,
Já não importa se a fruta é doce ou ácida, se sou bom ou mau
Ou se fiz amor na noite passada...
É irrelevante se ouvirão o Greenpeace, se ar e água vão acabar,
E se sou protagonista ou o coadjuvante condenado
Daquele filme aterrorizante baseado em King.
Esforço-me para sorrir e tento tirar a manhã para dançar,
Mas meu sorriso é uma alva máscara de dura porcelana,
Que não mais poderá convencer nada e nem ninguém.
E ela – a dama de prata-azulada – me desdenha e ignora,
Condenando-me sumariamente ao escárnio de ser para sempre
O insignificante e desajeitado feio do baile.
Eu já li, ouvi, acreditei e por mais de uma vez disse que
Depois da chuva vem o sol e depois da dor vem o sorriso...
Mas, por que tais frases me parecem tão vagas agora?
Mesmo a manhã – que deveria ser linda após horas umbrosas –
Em nada parece especial; ao menos não a este ser que –
Já não sei quanto tempo – não mais se mexe ou respira.