NOSTALGIA
(A Pessoa, Casemiro, Irmãos Grimm...)
O dedo espetei numa antiga roca...
Dessas que encerramos no sótão
Junto às nossas lembranças mais esquecidas...
Dessas que fiavam os meus sonhos
Quando eu era pequeno, e o mundo grande
E a casa de minha bisavó era, toda ela,
Cheiro e pano e sentido...
Sim, o dedo espetei numa roca antiga...
E o sangue que dele escorre
Parece saber o quanto se deixou para trás...
As folhas secas das árvores...
O grito dos meninos da escola...
O apito da fábrica...
A cigarra... ah, a cigarra...
(lugares comuns – mas que me parecem tão só meus, agora)
... e o sangue, sempre vivo,
tinge, sublinha, fecunda, vivifica...
o que, até ontem, nada era.
Espetei meu dedo (Ai!) numa roca
Dessas velhas e enferrujadas
E a dor que me faz frágil e menino
Me transporta, como num sonho a cores – rubro e cinza,
A um tempo em que o Tempo não sabia de si,
Não se sabia Tempo
e muito menos, inexorável.
E eu (que sei eu, de mim mesmo?),
Como num reino adormecido,
Revivo
imerso na nostalgia patética dos velhos,
Na plenitude ilógica dos santos,
No saber profano dos loucos,
Sim, na felicidade absurda dos loucos...!
Eu, inimaginavelmente grande,
Tão passionalmente sóbrio,
Tão absurdamente adulto,
Olho o mundo da altura do meu umbigo
– ou um pouco mais,
Sem alcançar o que há atrás do muro,
Por de trás do mundo...
(Como era bom!)
Como o sonho é mais bonito...
E o cheiro do pano,
E o som da cigarra,
E o cair fresco e cinza da tarde
Que acinzenta,
Que incinera
meu corpo
e tudo o mais...
Como se o entardecer trouxesse a Aurora,
Princesa bela e adormecida na torre de nossos teares...
Desse tênue fio que quanto mais se estica,
Mais rijo se torna,
Até que um dia... ele se parte...
E Ariadne...
Ariadne ... ... ... ficou na outra extremidade
À espera dos anos que,
Esses,... não voltam mais...
E a saudade,
“Velha Fiandeira”
de um quadro esmaecido de Van Gogh,
A dissolver-se...
A desenovelar-se...
a...
O dedo!
Eu espetei o dedo numa roca...
Estava velha e enferrujada!
Vou lavar bem e pôr Merthiolate.
Abril de 2002