Os esquecidos

Os Esquecidos

Maria da Graça Almeida

Com pesar e nostalgia,

faço versos e poesia

a homens dos tempos idos,

por muitos já esquecidos.

Quedo-me em estranheza,

pois só fora a natureza

-severa e imprudente-

que os fizera diferentes!

Eram tipos populares,

com trejeitos singulares,

pelo povo, desprezados,

destratados, pouco amados.

Contudo, eu lhes percebia

a cor da desolação,

em todos já pressentia

a dor da decepção.

Pois a vida os concebeu

no signo da crueldade,

como loucos e mendigos,

netos da iniqüidade.

Hoje suas sepulturas

são covas rentes ao chão,

que ferem a dignidade,

sem data ou outra inscrição!

Quisera ali escrever:

"Aqui jaz gente importante,

que só em minha memória

demarcou sua trajetória!"

A ouro poria seus nomes

pra compensar-lhes a fome,

assim na eternidade

daqui teriam saudade.

Porém, os nomes completos,

no tempo viraram pó,

só sei de seus apelidos:

Tonha, Zé louco,

Filu e Andó!

Filu

Maria da Graça Almeida

Boa e preta baiana,

em trapos de algodão,

dentes sujos, esparsos,

pés descalços ao chão.

A velha e simples Filu

vivia a dar muitos beijos,

deixando-a ainda mais só,

o puro e ingênuo desejo.

Esquivando-se sem maldade,

a gente da minha cidade

magoava Filu tão no fundo

dos olhos negros, profundos.

Como casa Filu tinha a rua,

como teto somente a lua,

a cama era apenas um canto,

a noite escura seu manto...

Um dia, de um lar de verdade,

meu pai fez-lhe a doação

com o dom da piedade,

que lhe habitava o coração.

Filu então na janela,

sorria e mostrava que ela

enfim conquistara a alegria,

em seus penúltimos dias!

Muitos no céu hoje estão

e com certeza Filu,

correndo a beijar, logo vai,

o chão onde pisa meu pai.

Andó

Maria da Graça Almeida

Ó, doce Andó!

Chapéu de ovo.

Sujeira, pó.

Estorvo novo:

o paletó.

Oca a barriga,

louca a cantiga

são referências

muito antigas.

Na língua presa,

no jeito só,

na pouca mesa,

tristeza, dó!

Ó, doce Andó!

Com nostalgia,

sem fantasia,

tenho sua fome

bem na lembrança

e, neste dia,

minha poesia,

seu breve nome,

traz como herança.

Tonha

Maria da Graça Almeida

Tonha tão tola,

Tonha tão boa,

Tonha levando,

a vida à toa.

O peito arfando ,

em farta bronquite,

fazia de Tonha,

a Tonha mais triste.

Vivia no asilo,

num canto tranqüilo.

usava as dores,

e colares em cores!

Tonha se foi,

cedo demais,

e seus colares

deixou para trás.

O peito largou

a tosse na terra

e, nesse instante,

as dores se enterram.

Hoje no céu,

num fiapo de nuvem

coloca sem conta,

estrelas de pontas.

Tonha tão tola,

Tonha tão boa,

Tonha se rindo,

sempre à toa!

Tonha se foi

tarde demais

sorrindo, vou vê-la

com o colo de estrelas!

Zé louco

Maria da Graça Almeida

Suado, estafado

e vinha o coitado,

correndo nos becos,

fugindo do cerco.

O ouvido zumbia,

o pé lhe doía,

morria aos pouco,

chamavam-no louco!

E o louco saía

e o louco queria

sentar-se num canto,

chorar o seu pranto.

Sob pedra cruzada

e vaia exaltada,

ali, debatia-se,

em franca agonia.

Um dia, cansado,

parou de correr,

voltou-se ao povo

e falou sem querer:

- Sou pobre e roto,

um ser aos farrapos,

sou sujo descalço,

mas não ameaço.

Sou fome e frio,

inteiro, um vazio.

mas não sou estúpido,

ainda sou lúcido!

E mesmo assim,

pobre de mim,

dizem que sou

louco... enfim...

E louco, por quê?

Só vivo fugindo

do ataque que é seu.

Eu sou perseguido

e o louco sou eu?

Maria da Graça Almeida

maria da graça almeida
Enviado por maria da graça almeida em 17/05/2005
Reeditado em 17/05/2005
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