O VESPEIRO

José António Gonçalves

Morria, se não me pusesses

a mão no peito. Esse é o jeito

de me sentir vivo; o outro é ler

Pessoa, na pele de Álvaro de Campos.

Não me serve de muito, sei, dizer

assim, a descompasso do que somos,

como se apenas iluminados por pirilampos

nos procurássemos, aguardando as benesses

da nossa loucura: eu te amo. Pomos

de muitas discórdias, as palavras são ecos

de outras palavras. Perderam o sentido

entre orações mil vezes repetidas, hoje

já sem qualquer significado. Estamos secos

de lágrimas, de emoções, de saudades,

na certeza de que, para trás, fica o vivido

espaço de uma recordação. Só me foge

o testemunho que rabisquei pelas cidades,

onde acordava com o teu cheiro. Queria,

em boa verdade, ter sido o teu primeiro,

em tudo. Especialmente no mar da tua pele,

no calor da tua carne, no ar dos teus suspiros.

Mas depois deparo-me com a realidade. O dia

diz-me como não há nada, nem memória; nos papiros

dos teus olhos espelham-se rasgos, vãos, de história

e eu, sozinho, aprisiono-os, como se um vespeiro

me atacasse no espaço, vazio, duma folha de papel.

José António Gonçalves

16.01.05

http://members.netmadeira.co/jagoncalves/

JAG
Enviado por JAG em 16/06/2005
Código do texto: T25061