A VIAGEM DE PAULO A DAMASCO
Primeira parte.
Onde se retrata as condições, naquele dia sombrio, da estrada que conduzia a antiga cidade de Damasco.
I
Homens nascem e homens morrem,
Mas homens sempre existirão, poucos ou muitos
Menores ou maiores,
Humildes ou poderosos
Sempre existirão.
A multidão sempre será imensa
Como estrelas
Como areia que pisamos com os pés
Homens nascem e homens morrem
Mas alguns permanecem.
Os dias também são os mesmos
Com as mesmas horas, os mesmos passos
A rotina do ir e vir encravada em nosso sangue
Nossos músculos
Nossa face marcada de tempo
Nossa face marcada de espanto
Nossas mãos imensas de dor.
Há homens tristes e sempre haverão.
As estradas também são eternas
Sempre existirão estradas
Com mais pedras ou menos pedras
Algumas no caminho
Outras aguardando para entrar no caminho
E a luta é contínua, sempre uma boa luta
Entre os homens e as pedras
Entre os homens e si mesmos.
Flores também existem
Desde o inicio do mundo
Como todas as coisas criadas
Pela ordem natural de Deus
Aquele que nos contempla e admira
Aquele que ara em nossos corpos
E planta trigo, planta fé, planta tempo.
E flores haverão
Assim como haverá quem as pise
E as arranque
Tudo fazendo parte
Do mesmo quadro estranho
Que não compreendemos
Homens cegos que somos.
Mas não havia flores naquela tarde
Tarde negra de nuvens, desenhos sombrios
Desenhados no ar daquele dia
Alguns pingos vertendo frescor
Sobre a poeira vermelha
Naquela estradinha ridícula
Onde transeuntes ocasionais passavam
Vestidos de branco em direção
Aos prédios distantes, além dos prados
Além das pedras, além das faces.
Naquele dia sombrio, a tarde já declinava
Pelo oriente perplexo de colinas
As manchas vermelhas tingidas
Ninguém sabia, se pelos olhos
Ou pelas mãos invisíveis de Deus.
Algumas pessoas caminhavam lentamente
Pela estradinha sem graça
Que levava à cidade, além do monte
Após a linha horizontal que parecia nunca chegar.
Segunda parte.
De como Deus nos engana (e assim também enganou a Paulo), e de como usa de artifícios para que possamos chegar até Ele.
II
Roma era o centro do universo
E os homens ambiciosos e implacáveis
Em busca de fama e poder
Deveriam ser filhos de Roma
Deveriam ser escravos de Roma
Deveriam ser as putas de Roma
Porque o poder e a fama são cruéis
E cobram caro pelos seus serviços
Desde que o mundo é mundo.
Desde que os homens caíram
Na armadilha do poder e do dinheiro.
Roma era a grande meretriz da terra
E os homens se corrompiam por seus bairros
Escravos eram mortos e chicoteados
A vida não valia nada, a carne era vilipendiada
A carne deveria ser o combustível do poder
Moeda de barganha, comprada e vendida
Artigo de segunda, leiloada nas praças.
Foi ali que Saulo, vindo do povoado de Társis
Construiu sua reputação de nobre implacável
Matando homens, mutilando homens
Pela glória e poder de Roma e do Imperador.
(às vezes o amor se disfarça com velhas roupas
e parece ser outra coisa menos nobre
Disfarçando-se às vezes de guerra
disfarçando-se às vezes de morte
para que os homens sejam enganados
e aprendam o amor, pensando na guerra
aprendam a paz, empunhando a espada
E se cheguem à Deus, seu pai
Que usa de subterfugios para seduzí-los
às vezes o amor vem como dor e choro
E negra escuridão, apavorante monstro
Para que os homens sejam seduzidos
E caminhem rente ao amor mesmo não o vendo
E caminhem, mesmo que lentamente para a luz
Ainda que a estrada seja espinho e dor.
Para que o filho chegue à verdadeira vida
O pai determina sua morte, e assim avançamos
usando nossos espíritos indecisos
também desta forma sutil o amor nos chega
e não percebemos
Homens cegos que somos.
Às vezes o amor nos engole
E sucumbimos bebendo nele a desesperança
E nosso espírito luta contra
E rebela-se e grita, animal selvagem do ser
Tentando por todos os meios fugir do destino
Que a marca em nossos rostos aprofunda,
Mas nossa carne deve sentir o furor
Nosso espírito deve ser amansado
Para podermos caminhar até o amor
O brilho e o início de tudo, nosso Deus e nosso mestre).
Terceira Parte
De como a dor surgiu na vida de Paulo, o representante de Roma, em forma de luz, que o cegou e o derrubou, à vista de seus prisioneiros e subordinados.
III
A dor era imensa, a dor era crua e parecia uma espada
Rasgando a carne, decepando músculos,
Enlouquecendo, enlouquecendo, turvando os olhos
E Paulo ergueu as mãos, gritando, tamanha era a dor
(A carne arrebentado, grilhões marcando seu rosto,
Seus olhos apenas percebendo a intensa luz que fluía do céu),
Mas a luz doía, era tão imensamente dolorida
Que caiu do cavalo e arrastou-se pela areia
Da Estradinha de Damasco, naquela tarde
Que nem sol havia no céu, apenas o brilho repentino
Que o cegou e o jogou no chão, no pó, entre as pedras.
A dor era negra, era de pregos furando as mãos
Seu colete de aço, suas pernas fortes de oficial romano;
A dor era quase palpável, quase uma entidade viva
E ele sequer percebeu seus auxiliares a levantá-lo
Assustados com seus gritos de desespero
Envergonhados diante da ridícula cena
Que aquele poderoso homem fazia
Arrastando-se pelo chão,
Gritando de tanta dor.
Balbuciava palavras desconexas
Esfregava os olhos, mas a escuridão permanecia
A escuridão dominava seu cérebro,
Junto com a dor lancinante,
Perceberam, abismados, que Paulo de Társis
O representante do poder romano, estava cego
E já não podia caminhar sozinho
E suas pernas trôpegas já não se sustentavam
Porque a dor as atingira de forma completa
Brutal e inexorável;
Que ele, Paulo de Társis, aquele a quem o Imperador
Senhor de todo o poder romano
Havia designado suas mãos e seus olhos,
Agora estava cego e inútil.
Com custo foi levantado e colocado sobre o cavalo
Com dificuldade foi alçado ao seu lugar de direito
Na vanguarda da multidão que se locomovia
Prisioneiros, alguns sangrando sob chicotadas
Outros com feridas e cicatrizes pelo corpo,
Porque ousaram ouvir as palavras do Galileu
Que sequer conheceram, que nunca viram
Mas que invadiu-lhes o coração de tal forma
Que o sangue derradeiro sob o chicote
Tornava-se como água límpida da fonte.
Com custo foi levantado e colocado ereto sob o cavalo
E lhe foi devolvido o cetro real de Roma
E sua imponência lhe foi devolvida,
Mas seus olhos continuavam vagos e cegos
Não notavam os movimentos, as pessoas
E o poder de Roma já não lhe servia
O cetro do imperador já não lhe servia
E Paulo de Tarsis, o matador de cristãos
Tornou-se como uma criança
Conduzido por aqueles a quem devia conduzir.