A DIFERENÇA

José António Gonçalves

nada me move no muro de cinza

contra o barro a poeira da estrada

levando o homem consigo

na marca das suas pegadas

para novos destinos velhas ilusões

em busca de paraísos misteriosos

e de castelos de areia sensíveis

à cegueira das ondas do mar

com apóstolos da vida a apontar

existirem sempre fugas resplandecentes

logo mais além da curva longa

nos lugares mais distantes e inacessíveis

onde a visão não logra chegar

a diferença que sinto

debaixo destas nuvens de algodão

que decoraram de há muito os seus nomes

e de um sol cruel que fendeu cicatrizes

nos rostos e nas costas do povo anónimo

peregrinando a terra e a água da ilha

centro pulsante do universo e do mundo

renovando-lhes o sangue nas veias

e cuidando através dos séculos

de apurar-lhes o verde dos seus alicerces

no colar das suas montanhas escarpadas

a diferença que sinto

dizia

entre o ontem obscurecido pela história

e o presente iluminado pela clarividência

dos livros abertos da memória

é que já não se parte só por partir

nem se navega apenas por navegar

sob o tactear da necessidade

a luzes-meias

com a noite do desconhecimento

nada me move contra o pó

o barro que concebeu o homem

e deu sentido ao milagre da mulher

nem ao semear do amor telúrico

avassalando o quotidiano cibernético

onde o demónio e um deus qualquer

podem até jogar ao dominó

o que me importa é viver o momento

interpelando o desconhecido

que me cumprimenta na rua

distraído pelo reboliço da cidade

e tentar cuidar de que um dia

não venha a morrer ainda procurando

por uma inalcançável identidade

no reconhecimento do abandono

de estar

José António Gonçalves

JAG
Enviado por JAG em 25/02/2007
Código do texto: T392816