Onde o poema se meteu
O poema se esconde
No gueto
Na lesma
No esgoto
No esôfago
No gosto amargo
No amarro do cáqui
O poema é esférico
Circular
Ele é agudo
Obtuso
Intruso
Mete-se onde não é chamado
O poema é azul
Cor-do-mar
Ele é terra-montanha
Da mata
Do serrado
Do rio e do ar
Ele paira e levita
Ele eriça-se por pouco
O poema não é daqui
Ele veio de longe
De cantos diversos
É o inverso da prosa
Um universo à parte
Ele é íntegro
Mas parte-se
Ele pode ser rebuscado
Escorreito
Sincero
Discreto
Moleque
Safado
Pensado e improvisado
O poema não tem juízo
Ele é do louco
Ele não tem dono
É escorregadio e concreto
É feito na rua
Pelo sem-teto
Ele cresce no limbo
Na margem
Está no rap
Na favela
Ele acende-se
É como vela na escuridão
Ele é culto e belo
Mas é também analfabeto
Ele é reto ou estreito
Largo e perigoso
Novo e antigo
Em versos contados
Ou livres e soltos
O poema é canto
Choroso
Humilde e orgulhoso
Brigão
Está no diamante
No pó e no carvão
Na planície e no vão
Ele só não é pão
Alimento
Mas pode ser sustento
Vento e tufão
O poema é estandarte
A parte mais bela
Da palavra
Inspira o artistas
Incita a guerra
Mas fica melhor
Como instrumento de paz
O poema Anda por caminhos estreitos
No fio da navalha
Passa na malha do pescador
Não lhe retém grades
Concreto
prisão
Esvai-se como água pelos vãos
Escapa pelas mãos
O poema está em todo canto
Insere-se na prosa
No livros sagrados
No Baghavat Gita
Na Bíblia
No Alcorão
O poema é do santo
mas também profano
insulta deus e a religião
é um desvairado
meio débil
anda na contramão
no desvio
bandeira do ateu
do herege
pelo sim pelo não
recupera-se
e torna-se cristão
O poema é igual gente
Contraditório
Prolixo
Instável palatável
Inominável
Fala pelos cotovelos
E como um novelo
Que se desenrola
Palavrório sem fim
Há quem nele se enrola
Que o fie e desfie
Por horas a fio
O poema é letra que se desdobra
E escorre da caneta
Um fio que se tece
Emoção
Aflição
Por onde se conta história
Se conta as glórias
As guerras perdidas
E os amores perfeitos
E se esvai em mil direções
E só finda
Quando finda-se as idéias
A inspiração
O poema é peça distinta
Carpintaria fina
Madeira rara
Pra ser esculpida
Mas poder matéria-bruta
Que não precisa
Ser embalada
É pro consumo imediato
Pro ato preciso
de ser alimento
Na boca do cantador de feira
Que enfileira versos
Como soldados
E os desfila em pelotões
Pode ser idílico
Um infinito de idéias
Homérico
De léxico complexo
E de sintaxe estásica
Enfim o poema vive por ai
Em torres de marfim
Isolado acadêmico
Ou vadio por ai
No oco do mundo
entre a glosa e o gozo
sem mistérios
sem enigmas e esfinge
O poema finge que sério
Mas no fundo
É mero incendiário
Um fingidor
Mente pra existir
Diz verdades pra incomodar
Um coisa é certa
Ela gosta de palavra sonora
É um delírio da palavra
Um lavra própria
De que tem o dom
Um som raro e vulgar
Um ser híbrido
Que nada e voa
Fogo e pavio
Navio e ponte
Dançarino e equilibrista
Não se vende
Se defende como pode
É um ode à criação
uma benção divina
ou só uma criação humana
O poema é valente
Enfrenta adversidade
É do campo e da cidade
Inconformidade em pessoa
Palavra revestida de vulcão
O poema é moderno
E arcaico
Recôncavo e direto
Lívido e concreto
Oco e profundo
Espalhafatoso e silente
É um doente que não sara
Não se encurva
Não tem cura
É contradição
Fieira e pião
É completo e inexato
Aprendiz e lição
O poema não tem eira nem beira
Fede e cheira
Não é afeito a rédeas
Não mais aceita
A prisão do verso exato
Alexandrino
Mas no fundo prefere-se
De todo jeito
Não enjeita o complexo
Nem o impreciso
O poema é um rolo só
E não tem fim
É uma coisa insana
Não se prende na coleira
Corrói e causa dano
Mas pode ser um cão sem dono
Perdido
Louco por um aceno
O poem é também fel que se destila
Rima fácil com ironia e malícia
Não rejeita palavra
Mesmo feia e insana
Mesmo diarréia,
Sífilis Aids e ditadura
Ele tudo atura e remedia
Bota suavidade no veneno
Amor na dor
Alegria no dia-a-dia
O poema é um drama
E comédia
É Bethânia e Sagarana
Está n a senda e no asfalto
É uma rocha que rola
Ladeira
Está na doideira do mundo
É oriundo do verbo
É filho doido do mundo
Palavra-chave
É destrave
O poema já fez estada
No inferno
E voltou
Contou a divina comédia
Foi pedra do reino
E sujou-se de sangue e lama
Derrubou rei
Elevou o vassalo
Andou a pé
E a cavalo
O poema dói no calo
Pisa no dedo doente
Põe o dedo na ferida
Grita e berra
Mas também ferra-se
Como gado
O poema é cupim
Que corrói os livros do sem fim
E escapa entre letras
Que traça entrepalavras
Que trapaça nas cartas
E não entrega o segredo
É um complexo enredo
Que só chega ao fim
Com um ponto final