MINHA MÃE SE FOI

À Dalva Francisco de Camargo Cardoso 10/03/1933 - 20/10/2009.

Hoje faz mais um ano

Dalva minha mãe se foi

Há seis dias do meu 54º aniversário

Meio século após meu pai

Quando eu engatinhava para os quatro anos

Sem brilho

Sem fama

Sem grana

Sem posses

Sem vivas

Sem salvas de tiros

Mãe doméstica

Mãe preta

Mãe pobre

Mãe periférica

Não vende jornal

Não é notícia sensacional

Apareceria

Se fosse diva empresarial

Se fosse lucrativa manchete social

Se fosse liderança eleitoral

Se da Miss Brasil fosse rival

Se fosse grande caso policial

Se fosse estelar empreendedora social

Até sobrinhos, filhos e netos seus

Hipnotizados pelos mercados capitais

Pra ela viraram o rosto

Ou a querem apenas para escada

Ou a querem apenas para encosto

Enquanto a bolsa não seca

Quem não tem vintém é visto como ninguém

Autodidata

Ensino primário incompleto

Minha mãe era arrumadeira

Minha mãe era babá

Minha mãe era cozinheira

Minha mãe era cabeleireira

Minha mãe era costureira

Minha mãe era lavadeira

Fazedora de filhos

Estrela artista no palco dona de casa

Cantava Angela, Carmem, Dalva, Elza, Angela, Eliseth

E outras rainhas do rádio em trono fundo de quintal

Do jeito dela

Entre torto e reto amou e odiou

Os filhos que deu luz

Eu, Osvaldo, Izilda, Ariovaldo, Alzira, Marizilda

Os filhos que a outros entregou

Os filhos que abandonou

Os filhos que abortou

Tive irmão um ou dois anos mais novo

Que desceu pelos ralos

Os filhos que foram sua recompensa

Os filhos que sepultou

Alzira, Marizilda, Osvaldo

Os filhos que foram seu karma

Os filhos que foram seu dharma

Os filhos que foram a sua cruz

Os filhos que foram a sua luz

Eu e minha mãe

Fomos sementes lançadas nas pedras

Fomos como óleo e água

Sua lembrança tece meu poema

Em ausências

Em carências

Em conflitos

Em crises

Em culpas

Em mágoas

Em questionamentos

Em rejeições

Em suposições

Em traumas

Esparsos e rasos momentos

Tivemos para um feliz versejar

Eram monossílabas nossas conversas

Pontuadas por longas reticências

Fomos mãe e filho em terreno movediço

Família edificada em terreno arenoso

Qual base foi nosso alicerce?

Seja mãe, seja pai

O que representa ter um filho?

Seja mãe, seja pai

O que significa ter um filho?

O que para minha mãe representei?

O que para meu pai signifiquei?

Respostas foram com eles para sepulturas

Jamais saberei

Neste novelo

Enredo de novela

Tema para romance

Argumento para cinema e teatro

Arquipélago de interrogações

O poema não sabe dizer

Se minha mãe foi Judas

Se minha mãe foi Madalena

Se minha mãe foi Maria

Se minha mãe foi mártir

Se minha mãe foi mercenária

Se minha mãe foi otária

Ou em meio a muitas parecidas

Presentes em caminhos por onde ando

Foi apenas mais uma mulher negra

Geradora de gado fresco a matadouros

Para repasto senhoriais

Mais uma mulher apagada pelas borrachas da história

Que nos esconde

Que nos nega

Que nos varre feito lixo

Quando nos torna sugado bagaço

Que nos violenta de maneiras diversas

Na sua domesticidade

Quantas famílias minha mãe ajudou enriquecer?

Na sua domesticidade

Quantos filhos dos filhos minha mãe ajudou promover?

Na sua domesticidade

Quantos servos minha mãe ajudou recrutar?

Na sua domesticidade

Quantos senhores minha mãe ajudou no mando manter?

Feito pássaro de asas cortadas

Aspirando alturas

Fugas de fomes e cárceres

Minha mãe agarrou-se a meios náufragos

Perdeu seu rumo

Saiu do prumo

Quando eles afundaram

Anastácia, Aqualtune, Asantewaa,

Carolina, Chiquinha, Clementina,

Dandara, Firmina, Harriet, Luíza Mahin,

Njinga, Tereza de Benguela, Maria Quitéria

Fênix como elas e outras tantas anônimas

Fênix como elas e outras tantas referenciais

Que não cabem neste poema

Minha mãe não conseguiu ser

Com eles se afogou

Com eles se eclipsou

Com eles se embriagou

Com eles desmoronou

Com eles se soterrou

Saltos mortais nos trapézios da vida

Mulheres dependentes de homens

Na maioria das vezes caem

Muito se fala em dororidade

Muito se fala em irmandade

Muito se fala em solidariedade

Muito se fala em sororidade

Quais caminhos minha mãe traçaria

Se ganhasse uma bolsa de oportunidades?

Quais caminhos minha mãe trilharia

Se houvessem cotas de possibilidades?

Quais voos minha mãe alçaria

Se houvessem quilombos de potencialidades?

Inclinações, propensões, vocações todo ser possui

Há seis dias do meu 54º aniversário

Dalva, minha mãe se foi

Hoje faz mais um ano

Seus olhos, seus olhares

Sua uva em folha duas vezes viúva

Aos setenta e seis murchou seca

Sem amigos

Sem obra seminal

Sem namorado

Sem príncipe enrolado

Para encantar seus castelos solitários

Dela só um retrato da sua bela mocidade restou

Minha mãe se foi

E com certeza

Igual a outras tantas mães mulheres negras

Igual a outras tantas mães mulheres de múltiplas cores

Atormentadas

Por carências, frustrações, medos, pesadelos

Sedentas de afetos, desejos, sonhos

Amordaçados

Confinados

Dobrados

Guardados

Rezados em silêncios

Cantados com as cantoras

E seus coros esperançados

E seus coros esperançantes

Em vozes muitas vezes dilaceradas

Assim era Dalva minha mãe

Assim foi Dalva minha mãe

Pelas ruas do bairro

Pelas praças da cidade

Pelos meios de comunicação

Pelas quebradas do país

Pelas senzalas do mundo

Pelos albergues, bares, celas, igrejas

Pelos hospícios, lares, prostíbulos, templos, terreiros

Pelos shoppings com suas vitrines cintilantes

Fisgadas por iscas e promessas conjugais

Quantas mulheres-mães se parecem com a minha mãe?

Oubi Inaê Kibuko, Cidade Tiradentes, 20/10/2017.

Disponível com imagem no blog CABEÇAS FALANTES:

http://tamboresfalantes.blogspot.com/2017/10/minha-mae-se-foi-poema-de-oubi-inae.html