Águas claras

Em que águas claras,

em que rios barrentos,

em que noites,

com que ventos,

meu coração alçava

vôos na memória,

no tempo?

Águas passadas

só servem para remoer

antigos sonhos, esmagar

pensamentos entre

pedras desgastadas

e o lixo deixado por

amores mal resolvidos.

Sonho e minhas lágrimas

escorrem. Aí vejo,

na noite solitária, novas

águas, claras águas.

Elas se encontram com

o rio barrento do meu

ser onde tudo o que era

vivo começava a morrer.

As claras águas trazem vida,

e fazem o velho rio renascer,

a buscar novos leitos, a

esparramar-se em intensas

enchentes, a revigorar-se

entre as pedras de saltos,

onde, em sobressaltos,

um pequeno peixe

espantava-se com

o oxigênio que voltava

a ser abundante, sem

intoxicações, sufoco.

O rio barrento ganha outra cor,

fica menos denso, menos impuro,

mais propício a novas vidas.

Se presta a lavar mais quintais,

a irrigar lavouras ressequidas,

pode lavar os cabelos

louros da mulher que não

mais acredita no amor e que

sente-se, novamente, abraçada

pelo calor daquelas águas

que escorrem por seu corpo.

Águas claras, rio barrento.

Num novo leito, novos encontros,

novos afluentes, velhos sonhos,

novos desencantos, futuros incertos

ou um certo futuro.

As águas claras querem correr

livres por outros cantos,

querem embrenhar-se por outras

fendas, querem misturar-se com

outras terras, querem virar barro,

querem virar tijolos,

querem virar santos.

Ave Maria!

Querem seguir por novos

leitos, querem fundir-se com outras

águas revigoradas.

Querem virar um novo

e caudaloso rio.

Então o velho rio barrento

começa a perder forças,

a sentir dissipar-se em

densa névoa, evaporar-se.

Tenta permanecer forte,

agarra-se nas conhecidas

margens de tantos anos

do velho caminho.

Leva mais terras que se

misturar aos entulhos

revolvidos do seu leito

obscurecido pelo abandono.

O tempo é curto,

começam a surgir os

sinais do fim do caminho,

as primeiras corredeiras,

os pequenos saltos,

a grande cachoeira.

O rio barrento sabe que não mais

poderá sentir o doce daquelas

águas claras que o revigoraram

por intensos períodos do

breve encontro.

O fim está próximo.

Ele começa a se sentir comprimido

entre as fortes rochas.

O fim se aproxima.

Pressente o adeus.

Oh, Deus!

Ele, então, chora intensamente.

e inicia a cerimônia da

despedida.

Lágrimas com gosto

de nostalgia e abandono.

E transforma toda

sua mágoa, toda sua saudade

em água salgada.

Amar, nunca mais.

E vira mar...

Rogério Viana
Enviado por Rogério Viana em 11/03/2005
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