Sem título(90)

Profanem-me

Nomeiem-me como o mais impuro dos homens

Lapidem-me no esconjuro de todas as pragas

Amortalhem-me em fervente cal

E quem dera que a sorte dos ventos faça um certo norte

No desnorte das vossas instáveis naus

Quem dera que sangrando eterna e desmedidamente

Por mim sangrando

Seja mais verde e frutuosa a vossa árvore

E a ave tenha artes novas de voar

E a ave faça o voo na plena demanda dos vossos recalcados sonhos

E toda a aridez dos solos se faça oásis em vosso deleite

E se for azul o vosso desejo

Que seja sempre o firmamento a tela assim colorida

Que sejam sempre os nascentes e poentes

Fontes de cor que vossos olhos ansiarem

Assestem-me com dardos e zagaias

Dilacerem-me

Sepultem-me na lava do mais bravo vulcão

E quem dera que em cinzas pulverizado

Disperso ao vento beijando terras e mares

Seja a ínfima e perniciosa partícula

Ausente do vosso respirar

O resto de mim esquecido nas lonjuras

Em distância segura do vosso espaço íntimo de pureza

Quem dera que sendo já esquecido na memória

Das coisas e dos lugares -que da memória das gentes nunca ocupei lugar –

Quem dera que sendo o exímio derrotado

O barco triunfalmente naufragado

Quem dera que partindo

Floresçam mil sóis em vossos olhos

Quem dera

Quem me dera ao deus dará perdido em desérticos ou glaciares infernos

Quem me dera já ser apenas a boca trincando a fome

Ser apenas o autófago coração fragmentado

Ser sem nada ter e nada valer

Quem dera que assim se cumprisse a fortuna alheia

Quem dera saber e já sem poder ver

Quem dera que assim partindo

Vos seja de proveito o proveitoso da vida

Dionísio Dinis