LUCILA

Minha voz não tem pudor,

não tem cor nem rancor.

Sem decoro ecoa

junto ao coro das mulheres

para quem seus homens

chegam atrasados à mesa

erram o endereço da cama

e chamam suas damas

de 'minhas vagabundas'.

Minha voz ancora no raso da vida

e decora a superfície dos vestidos

para que outras passem ao largo

com ou sem os seus homens

e façam do mundo descarrilhado

comboio a seguir seu curso.

Agora eu sou Lucila

e embora goste do perfume barato

de certos homens brutos

não gosto das mãos cegas

certas e brutas

daqueles que depois do banho

ainda úmidos em volúpia

acreditam ter o mundo girando

em torno do próprio umbigo.

Eu apenas invejo a certeza

que têm os homens

e coro vermelha

fingindo ser tocada a pele

por aquela bem definida verdade;

a simples verdade da carne dura

da sorte bem nascida de ter sido homem

noutra noutra camada de dor

forjada no calor em ondas

e notas nobres de perfumes raros.

Longe de mim ser modelo,

eu nasci verbo indulgente.

Olhos vorazes enxergam

aborto em mim porque nasci

da brutalidade da mão firme

que fizera germinar negligente

a inesperada candura de Lucila.

Nas ruas ora sem cheiro crua

vago itinerante 'insuportadora'.

Sou rasgo na epiderme aberto,

no ovário já era um delito.

Me consumem os dias

a vida é uma estria libérrima,

abrupta e contígua.

Entre aqueles homens eu sou mais,

me sinto outra e ainda mais bruta.

*

*

Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 22/06/2019
Código do texto: T6678966
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