Era uma noite quente em nosso quarto

Era uma noite quente em nosso quarto

com longos roncos da mulher amada

e um calor insistente, velho e farto.

Lençóis molhados de suor e nada

no mundo me faria adormecer.

Três horas a sofrer em um forno infernal.

Próximo de derreter,

eu quis chamá-la, afinal.

"Mulher" — eu murmurava, mas estático —,

"dormes?" — e nada respondia ali.

"Dormes?!" — um ronco impessoal, apático,

foi tudo o que se pôde dela ouvir.

A esposa como rocha adormecia

enquanto eu padecia em um forno infernal.

Porque senão morreria,

quis levantar-me, afinal.

No banheiro, do quarto algum ruído

se pôde ouvir que não era o ressono;

ao retornar, constatei, aturdido

um susto que, por medo, não questiono.

De Madalena o quadro crepitando

sobre a cama e chamando assustadoramente:

"Ó meu pai, estou queimando,

dolorida, e impotente!"

Surpreendido diante da visão

daquela filha que meu peito habita,

daquela minha filha sob o chão

guardada há tantos anos, já sem vida,

pensei haver decerto enlouquecido.

"Mulher!..." — disse, encolhido. — "É nossa Madalena!

Ouve o que diz teu marido!

Visita-nos a pequena!"

Movimento nenhum se pôde ver...

Antes, o quadro estava engavetado

para não termos de na morte crer

da filha ausente de seu berço amado.

Agora o quadro estava sobre a cama,

resistindo na chama e chamando por mim.

Eu, temendo, de pijama,

da porta, escutava assim:

"Ó meu pai, como eu queimo sob a terra!

Como me doem as memórias últimas!

Meus braços prende, meus olhinhos cerra,

meu corpo toca em formas vis e múltiplas!...

Fui, como neste quadro, aprisionada,

tive a pele queimada a toques monstruosos!

Lembra-te da filha amada!

Dos momentos pavorosos!"

"Minha filha!" — gritei, e cresceu-se a brasa —

"Então me digas o que queres já!" —

Espalharam-se as chamas pela casa,

odor de inferno se espalhou por lá...

"Eu quero, ó fiel pai!, quero a lembrança!

Eu fui tua criança e não quero mudar!"

Minha desaventurança

foi minha filhinha amar.

Há pouco tempo, há pouco realmente,

havia eu começado a confiar

nas mãos de Deus sua vidinha quente,

que bem cuidada deveria estar.

Mas ela esgoelava lá do inferno,

queimando ao frio do inverno, implorando a memória...

Esquecer o amor paterno

era vitória ilusória.

Minha filha sofria — estava claro! —,

e eu não podia conviver com isso.

Porém, ante tamanho desamparo,

que pode um pai por um chorar mortiço?

Enfim, o que pediu-me foi lembrança,

pois lhe dava esperança existir recordada.

Ela me deixou de herança

o luto e a vida acabada.

"Meu pai, quando sorris, meu peito cortas,

pois imagino que fiquei sozinha.

Enquanto ris, sigo amarrada em cordas

que não se soltarão da pele minha.

Estou eternamente te observando,

gemendo e te aguardando lembrar-te de mim...

Não te vás me abandonando,

não me obliteres assim."

Envolviam-me as chamas a essa altura.

Cada um dos membros, e as artérias vivas,

tudo foi devorado com loucura

por labaredas de terror nocivas.

"Mulher! Acorda e nota Madalena!

Ver-nos veio a pequena, a terrível menina!"

Dormia a esposa, serena,

sem notar minha ruína...

"Filha! Sei de teu corpo pequenino,

ele popula os pesadelos meus;

ele badala agudo como um sino,

por vinte e quatro vezes, por um Deus!

A tua voz, ela pediu ajuda,

pai sabe porque a escuta em gritos, com frequência!

Mas a morte, ela é tão bruta,

tão algoz é a impotência!"

Madalena chorou, rogando amor:

que eu fosse simplesmente pai queria.

Tornava-se mais forte aquele odor

a cada vez que "meu papai!" dizia...

Caminhei a seu quadro plangedor

e apanhei-a nas mãos — um sorriso ela abriu...

... Mas meus feitos foram vãos,

pois o fogo me engoliu.

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Escrito em março de 2020.

Se gostou do poema, pode acessar o link e ler sobre seu processo de criação: https://www.graduseditora.com/post/compondo-junto-%C3%A0-filosofia-da-composi%C3%A7%C3%A3o

Malveira Cruz
Enviado por Malveira Cruz em 21/03/2020
Código do texto: T6893313
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