Diário autoficcional de um escrevinhador

...Hoje, o céu amanheceu carregado e cinzento sombrio

Hoje, agradeci por ter sobrevivido mais um dia

Hoje, untada com fel e mel afiei a palavra

na pedra-lima do tempo em que vivo

Hoje, tenho fome faminta de afeto

Hoje, de amor amado amante estou sedento

Hoje, tenho carência querente de carinho

Hoje, queria abraço demorado, apertado, bem quente

Hoje, queria beijos molhados, dengos, risos, cafunés

Hoje, queria ouvir vozes música para os meus ouvidos

Hoje, queria ver jardins e pomares nos programas de tevê

Hoje, estou envenenado pelas serpentes do desamor

Hoje, não é um vírus que me assusta

Hoje, de uma pandemia não sinto medo

Hoje, estou apreensivo com as najas em Brasília

Hoje, são os mandatários do mundo que me inquietam

Hoje, são as mordaças governamentais que me perturbam

Hoje, são decisões e medidas militares que me atormentam

Hoje, as redes de dominação e seus cúmplices

são os meus maiores pesadelos

Hoje, mais um profissional da saúde faleceu

Hoje, outro paciente humilde não encontrou leito

Hoje, mais um diagnóstico não teve resultado

Hoje, outro hospital público está a beira do colapso

Hoje, devido a burrocracia, nos pelourinhos da humilhação

não consegui a esmola do Auxilio Emergencial

num país gerador de analfabetos funcionais

onde analfabetos políticos fazem coro ao curral

nem todos tem letramento digital

Hoje, uma associação me deu uma cesta básica

Hoje, fui xingado por ter mais de sessenta anos

Hoje, me negaram trabalho por residir no ânus da periferia

Hoje, me discriminaram por morar na Cidade Tiradentes

Hoje, soube que o Frei Davi está contaminado

Hoje, espaços públicos, estádios, salas de espetáculos,

igrejas, templos, deveriam acolher os mais necessitados

Hoje, soube que mais um artista cantou pra subir

Hoje, mais um morador de rua foi violentado

Hoje, 'a mão da limpeza' sem carteira assinada,

foi enxotada, está com pires estendido à piedade social

Hoje, outra esposa dependente

foi feita saco de pancada pelo marido

Hoje, percebi que preto com máscara é mais suspeito

Hoje, mais um estorvo idoso

foi jogado nos depósitos de gente

Hoje, mais uma idosa aposentada

foi coagida a sustentar vampiros e parasitas

Hoje, passei mais um dia sozinho

Hoje, lembrei um poema inacabado:

Antes só do que sempre atormentado

Hoje, fiz omelete com abobrinha e queijo ralado

Hoje, rapei o restante de um quibe de forno

Hoje, prestei gratidão a quem me ensinou a cozinhar

Hoje, eu que amo a vida de cachorro sem dono

Gostaria de bater perna pelos parques, praias, ruas

Hoje, elevei meu pensamento pela salvação da Terra

Hoje, mais um ganancioso e oportunista

enriqueceu com a miséria alheia

Hoje, mais um costado foi feito de trampolim

Hoje, o noticiário importou-se outra vez apenas com Ásia,

Europa, Inglaterra, Estados Unidos

Hoje, o noticiário novamente foi raso

sobre a situação em Cuba, África, Jamaica, Haiti,

pincelou fiapos dos povos indígenas,

não fez nenhuma menção à comunidades quilombolas

Hoje, pensei em como ser solidário

com a Organização Mundial de Saúde

Hoje, pensei em como posso ajudar

algo ou alguém pela Internet

Hoje, vou dormir outra vez

com a cabeça cheia de pensamentos revoltos

Hoje, fui consultado pelo telefone 136

sobre o meu estado de saúde

Hoje, percebi que empresários, imprensa marrom

e políticos formigas estão capitalizando a situação

Hoje, mais uma chamada inconveniente ligou e desligou

Hoje, senti uma brasa a mais de vergonha incandesceu

pelo Sérgio Capacho presidente feitor da Fundação Palmares

Hoje, pudera estar face à faca na praça com o BolsoNero

e dizer que ambos são espelhos divisores

que não me expressam, nem me representam

Hoje, decidi que nas próximas eleições

não servirei de bode encabrestado nem votarei em ninguém

Hoje, reafirmei seja centro, direita, esquerda,

eu continuo preto quilombeiro

Hoje, sou alto e forte, mas não sou de aço

Hoje, pensei em ligar para o 188

e falar em tom de socorro com o CVV

Hoje, se as bibliotecas do Força Ativa

e do Pombas Urbanas não estivesses fechadas

gostaria de poder reler cinco biografias:

uma é a do Malcon X, a outra é a do José Correia Leite

Hoje, algo me lembrou Maya Angelou e comecei

a entender 'porque o pássaro canta na gaiola'

Hoje, na atual conjuntura pergunto ao Márcio Barbosa

como estaria e se portaria a Frente Negra Brasileira

Hoje, parafraseando Elza Soares

estou escrevendo para não enlouquecer

Hoje, mais uma vez tentei entender porque

nos escravizamos ao Rei Dinheiro

Hoje, indaguei porque servimos

de boi de piranha à Rainha Economia

Hoje, mirei uma fileira na estante, me senti tentado

em queimar todos os livros sagrados nela presentes

Hoje, tive impressão que religiões dominantes

mancomunam com máquinas de exterminação

Hoje, crianças sob surra mental chupim parental

se não limpam para-brisas, vendem balas e doces

ou circulam nos faróis, feiras, mercados,

clamando um trocado, uma moeda

Hoje, a fortuna de líderes espirituais

subiu degraus acima nos gráficos da Forbes

Hoje, não vi nenhum dos dez mais ricos do planeta

abraçarem uma causa pelo combate ao vírus

Hoje, ouvi no rádio que uma rede bancária

vai doar um bilhão e certamente faturar mil vezes

com abatimentos no Imposto de Renda e outros tributos

Hoje, estreitaram mais direitos trabalhistas,

mas não reduziram salários e privilégios da classe política

Hoje, deixei no tanque meu orgulho e cantei Exaltasamba:

"Longe de ti não sei sorrir, sinto até saudades de mim"

Hoje, as raposas da saúde pública desviaram materiais

para abastecer hospitais privados e mercados paralelos

Hoje, se houvesse ações coordenadas e vontade política

nada quebraria e ninguém seria sacrificado pela quarentena

Hoje, lembrei ditos antepassados:

É preciso cair para aprender a levantar

Hoje, a gravura de um preto velho na parede me disse:

"Nunca digas desta água não beberei"

Hoje, esteja na casa grande, no Everest ou na lua

ainda sou visto como escravo, fantoche, marionete

à serviço da senzala que nos forjaram, que nos forjamos

Hoje, os poderosos que errarem terão asilo e defesa,

manadas abatidas nos matadouros terão o quê

Hoje, repeti que toda opção tem um preço;

escolha gratuita não existe

Hoje, uma senhora além de ser maltratada, quase foi linchada

por ter espirrado sequencialmente na fila do banco

Hoje, divaguei, um ponto dei à Simone Kormanski:

se fossemos mais vegetarianos e veganos,

talvez seríamos menos antropófagos

Ela aprecia Saramago deve estar lendo Ensaio Sobre a Cegueira

Hoje, por amor e respeito a mim e ao próximo fiquei em casa,

mesmo que o próximo esteja se lixando comigo

Hoje, pela manhã ao preparar meu café

uma aspiração me ocorreu

Hoje, a palavra Parceria, constante nos posicionamentos

da Maria das Dores Fernandes, tem fundamentos de baobás

Hoje, vi tudo que tenho em casa, item por item

e percebi que não sou autossuficiente

Hoje, concluí que por mais que eu seja independente,

somos elos de uma corrente, somos todos interdependentes

Hoje, quisera prosear e ver fotos da Nayara Rodrigues,

Osmar Moura, António Terra, Gisele Martins, Luiz Paulo Lima

Hoje, quem dera uma sessão de cinema africano

com cinéfilos chegados,

seguida de uma roda de conversa com café e salgadinhos

Hoje, bateu saudade forte e funda

no atabaque do coração pelas pessoas que estimo

Hoje, em vez de semear a Economia Solidária - governantes,

lideranças, apoiadores - estão atiçando a gula

e afiando dentes e garras do Capitalismo Canibal

Hoje, declamei Canto aos Palmares

com punho cerrado contra todas as tiranias

Hoje, lembrei do mestre Carlos Assumpção

e seu antológico Protesto: "Mesmo que voltem as costas

Às minhas palavras de fogo não pararei de gritar"

Hoje, reli "Marcas, Sonhos e Raízes", de Sonia Fátima Conceição

e "Malungos e Milongas, da Esmeralda Ribeiro

Hoje, é maior a minha certeza de que Respeito,

Retrocesso, Revolução, começam em casa

Hoje, deu vontade conclamar a população mundial

dos becos, vielas, quebradas, com Cristiane Sobral

e seu poema: "Não vou mais lavar os pratos"

Hoje, endossei Geni Guimarães: "Não há necessidade

de passadas longas, o importante é não ficarmos parados"

Hoje, tentei imaginar como seria um romance

"Escrevivências" da Conceição Evaristo,

Miriam Alves e suas "Estrelas no Dedo",

Heloísa Pires Lima com outras Histórias da Preta,

Kiusam de Oliveira na visão de Tayó,

um Encruzilhada 2 de Marcelo D'Salete,

ou Allan da Rosa e suas Pedagogingas sobre o Coronavírus

Hoje, lembrei que nossos passos, percalços, superações

em caminhos de pedras cortantes, vem de longe

Hoje, se a Trindade e Zumbi voltar que venham armados,

bem escolados e armaduramente escoltados

O Judas a serviço dos reis que habita em mim

Camaleônico, abastece, negocia com todos os lados

Por uma cadeira no planalto, na boca, no paraíso

Escraviza, leiloa, prostitui, vende até a própria mãe

Hoje, foi preciso uma caveirosa pandemia global

para Desigualdades, Eurocentrismos, Eugenias,

Machismos, Preconceitos, Racismos

e demais fobias vorazes

saíssem dos armários sem máscaras

Hoje, contemplei o céu de mim mesmo,

lembrei de Negras Raízes e vi no universo

as únicas coisas maiores do que eu

Hoje, não jorro dinheiro nem influência abre portas,

sou um simples homem preto e periférico do extremo leste

Hoje, a caminho de 6 ponto 5, andam dizendo

que sou um fracassado, ressentido, revoltado

estou me tornando importuno e ficando gagá

Hoje, em vez de abrir covas

queria estar lavrando esperanças no coração das pessoas

Hoje, em vez de cadáveres

queria ter bombons e buquês nas mãos

Hoje, se o salto se dá quando a enchente chega no pescoço

o pavor se revela quando estamos no bico do corvo

positivo seria dez imperadores mão de ferro no fio da navalha

Hoje, sem dízimos, pedágios, propinas, rabo preso,

em linha direta elevei meu pensamento

a mentes de bom senso, aos poderes celestes

Hoje, não pensei somente em mim,

não pensei apenas em amigos, colegas, familiares,

parentes, vizinhos e até passiveis inimigos

Hoje, desejei encontrar uma Fórmula Mágica da Paz:

"Ninguém é mais que ninguém, absolutamente

Aqui quem fala é mais um sobrevivente"

Hoje, eu queria ser um girassol

alheio a penumbra e reverenciando sempre a luz

Hoje, pela Humanidade dobrei os joelhos da soberba,

a meu modo rezei a Oração da Serenidade

Hoje, espero que erês, exus, caboclos, budas,

brahmas, cristos, deuses, pombagiras, orixás,

jeovás, maomés, mães pretas, pretos velhos,

santos, krishnas, tupãs, yabás de todos os nomes,

gêneros, panteões do mundo inteiro

e de todos os credos tenham me ouvido

Axé! Amém! Shalom! Saravá! Motumbá! Mucuiú!

Salamaleico! Namastê! Kolofé! Porangatu!...

Oubí Inaê Kibuko, Cidade Tiradentes para o mundo, 17/04/2020

Publicado com foto no Cabeças Falantes: https://tamboresfalantes.blogspot.com/2020/04/diario-autoficcional-de-um.html