Menina Morta

Vidas atrás, tu e eu: moleques transviados,

andando solitários, mãos dadas, pela mata...

E teu rosto rebrilhante, folgada, audaciosa, "Vamos bobalhão!",

"Vam'bora!..." O morro acima, o proverbial luar de prata,

e tu, sempre vaidosa, a camisa da moda,

a camisinha de listinhas torturante, grudada em ti

e nos teus seios-meninos.

A descoberta tua da impunidade, sem medo,

sempre olhos nos olhos, bêibe,

sem maldade.

E o banho de perfumes, a irrealidade

da tua doação, nossos corpos nus entrelaçados,

e os cheiros vizinhos sensuais de mata recém-pisada

e nós dois na cachoeira da nossa Maromba-Santa

e o baixa-santo teu e meu: tu, sempre alerta, bandeirante,

eu, bobalhão desavisado, e o nosso batismo safado

dentro da água geladinha, de cânhamo e fluidos e suor

e saliva e patchuli...

Madrugadinha o carro quebrado.

Nós na mata escura. Velas nas mãos,

incensos pendurados na clareirinha -

e os risos de rebrilho, e o silêncio quebrado

por ruídos indecifráveis, e o namoro-arrochado

debaixo do cobertor. Suados, quentinhos, tu sorris, eu tonto.

O carro nosso, deusa, nem te conto, pra sempre inútil...

E o desejo nosso fútil

de morar por lá, uma cabaninha, bichos-do-mato.

Carro largado, de novo pé-na-estrada, no ato,

na primeira carona pra algum lugar, qualquer lugar,

mochilas, canequinhas, bolsas de couro a tiracolo

e o imprescindível cobertor Parahyba,

quadriculado.

E novas paradas a esmo. Eu, bobão quadrado, envaidecido

com teu medinho fake de seres agarrada por teu vândalo,

na próxima curva mais escurinha – o teu desejo confesso,

maroto, safado, de repetir, e repetir, e repetir

teus transportes de gozo,

de seres violada, agorinha, naquele berço fofo

de capim-mimoso...

***

A camisinha grudada, a de listinha,

o teu diário que jamais me deixaste ler,

com tuas letras redondinhas e cuidadosas,

tua cara risonha, cristalina, o CD do Raulzito

que nos emprestava raios e trovões e discos-voadores

e cercas embandeiradas p'ras nossas noites friinhas e solitárias,

o banho sagrado na mata, o teu despudor, a minha tara,

a explosão final - sempre uma sinfonia alucinada de sons e cores,

sempre a redescoberta da paz possível e da felicidade,

o nosso fusca quebrado, pobre coitado...

A vontade infinita de virar bichos-grilos solitários,

a doce violência, o afago, o seu medo-pânico fingido

do teu vândalo/vassalo em nossas viagens de gozo,

os teus longos discursos infantis & libertários,

o teu olhar verde-maroto vagando pelo meu corpo,

inquiridor, pesquisador, curioso:

a tua mão, ah! a tua mão... com o anelzinho de lua-e-estrela,

minha princesa, princesa, princesa, princesa minha,

minha deusa, meu amor,

meu amor...!

tudo se foi, pra sempre,

junto contigo.

***

Hoje em dia, não corro mais qualquer perigo.

Sou um cara respeitável, sou cidadão imaculado,

ganho bem, verdadeiro pilar da comunidade.

Aqui, hoje, engravatado, cercado por luminares,

sobrenado. E vou sobrevivendo nessa descarnada realidade

do meu dia-a-dia.

Sabes? Nessa casa fria, aqui nesse apartamento,

entre paredes, coisas me vêm na cabeça, doidas,

quando chove como agora. É que sozinho

fiquei pra sempre, querida, patético, tragicômico,

depois que te fostes pro céu, assim,

minha patifezinha, minha menina curiosa –

do teu jeito audaz, como sempre, a tua cara:

sem me avisar, tão casual, tão derrepente!...

Enguiçado no meio de toda essa gente fiquei,

à procura daquela clareirinha...

Perdido pra sempre n’algum ponto remoto do tempo,

um saco vazio, minha menina. Um saco vazio

à cata da nossa vida, do teu rosto, do teu riso

do teu suor do teu cheiro

da tua voz

de ti