Lamentos no deserto

Curitiba, 25 de agosto de 2020.

são mãos pesadas me sufocando

o pescoço guarda as marcas desses dedos

tão pesados e certos do que fazem

deixam marcas notáveis no meu respirar

e o coração quebrado rufa em descompasso

eu ainda pertenço ao mundo

mas não me sinto mais em casa

caminho pelo deserto e me sinto tão cansada

de ter a impressão de que não saio do lugar

enquanto noutro plano o mundo acontece

todos beijam, amam, se casam, se multiplicam

nesse mundo onde há cores e risos

onde os abraços nunca cessam

a fronteira é um muro erguido com cacos de vidro

um muro alto e intransponível

o muro invisível me lembra um espelho

onde me vejo e vejo também o outro lado

desse mundo onde eu sou totalmente descartável

o amor me lembra aquela boneca que eu queria

e meus pais não podiam me dar

porque ela estava totalmente fora do orçamento

eu a namorava pela televisão

e naquele natal vi minha prima rica com a sua

andando para lá e para cá com as asseclas

"sai pra lá, favelada"

e eu só queria chegar pertinho da boneca

queria saber se ela era tão bonita quanto parecia

nunca entendi o motivo desse ódio tão irracional

eu também era uma criança

entendi no alto dos meus nove anos

que elas não faziam a menor questão de mim

eu destoava do contexto porque não era loirinha

não fazia o tipo atriz mirim de novela da globo

loirinha, branquinha, fotogênica,

se eu fosse Yasmin em vez de Maria

quiçá meu destino fosse mais abençoado

se eu fosse loira e alta não teria conhecido

tão duramente na pele a cicatriz da rejeição

o trio loiro se casou e traz ao mundo a nova geração

a favelada de olhos de jabuticaba

segue sendo a gata borralheira à espera do seu beijo

desse beijo que conheço de um sonho

desse beijo tão puro que ainda não dei

um beijo de amor e tão só

onde os lábios que tocam os meus

não me trocarão por um olho claro ou por uma novinha

ou se aproximarão fingindo algum afeto

para tentar tirar vantagem e depois sumir

a gata borralheira calça o allstar vermelho

e pensa que suas ideias estúpidas fazem sentido

escrever é expurgar do peito esse aperto

passar um bálsamo nas marcas invisíveis no pescoço

ainda assim o nó na garganta urra

por todos os gritos silenciados

e por todas as palavras que me aprisionaram

o amor é sempre assim comigo

quando eu encontro alguém de quem gosto

a vida sempre trata de tirar essa pessoa de mim

sem mensurar que embora eu viva de ciclos

meu coração já foi quebrado em tantos pedaços

que se eu não me sentir em casa

é porque tem muitos pedaços meus por aí

eu não sou inteira como pensam

devo estar em vários lugares do país

e se me fosse concedida a dádiva

de um doce amor correspondido

eu voaria até onde está meu beija-flor

eu voaria até o meu beija-flor porque só eu sei

o peso dessa saudade que estou carregando

a intensidade cruel desses dias de ausência

em que a travessia parece mais longa do que é

"o que é seu está guardado"

está tão guardado que quanto mais venta no deserto

mais difícil está de encontrar seja lá o que for

o caminho para entrar nesse mundo

onde eu poderia ser... gente

eu poderia ser pelo menos até a meia-noite

como todas as outras

por um dia eu queria ser como todas as outras

eu queria o meu beijo, o meu abraço,

o meu momento de me sentir um tiquinho especial

eu queria só por um dia sentir que mereço existir

que não fui um acidente de percurso

e enquanto isso os grãos de areia caem

a ampulheta é impassível ao meu caminhar

eu respiro fundo para tomar fôlego

no natal eu sou amada pela estrela reluzente

mas o mundo me convence do contrário

de que não mereço sorrir e celebrar

porque sou uma peça ímpar no quebra-cabeça

desse jogo injusto que chamam por aí de vida.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 25/08/2020
Código do texto: T7046107
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