O que amar nos faz saber

Meu bem,

a maioria das pessoas não sabe

o que nós sabemos.

E só amar nos faz saber

o que sabemos.

O que sei de você não saberia

se não a tivesse amado.

Não saberia

que seus beijos são doces como a baunilha,

e que seu gênio é doce como um licor.

Porque quando se ama alguém

se ama o todo:

os passos dela,

a respiração,

o jeito como dorme e o jeito como acorda;

ama-se cada gesto,

o modo como ajeita o cabelo,

como vira o rosto de um lado para o outro;

ama-se quando ela se atrapalha,

e até quando está irritada,

inflexível,

porque é ela,

e ama-se o todo

nela.

E porque nos amamos,

nós sabemos disso.

Sabemos que você foi

uma gota de Yang no meu Ying.

E, como duas faces da mesma moeda,

nosso amor dividia o tempo

entre o rosa e o azul.

De dia, o céu sorria

com um ciano intenso de outono.

E de noite, o céu enrubescia

um rosa incendiante de verão.

Lembro que todos os nossos dias

eram sorridentes dias de outono,

e todas as nossas noites

eram noites coradas de verão.

Lembro que éramos tão companheiros

a ponto de sentarmo-nos no fundo de um bar estudantil sombrio

e enfileirar garrafas vazias na mesa ao lado,

apreciando em iluminada contemplação

as batidas do Blues,

e retinindo nossas garrafas,

brindando o agora de cada baixo dedilhado

e tragando nossas cervejas no bico,

olhando para o teto de madeira,

felicitando toda a noite de néon

como reis.

E nas festas ao ar livre,

quando eu brincava de pitar seus cigarros, sem tragar,

éramos tão harmônicos,

dançando e bebendo batidas de vodca,

rodopiando nas alturas pelo éter,

ao som de sitaras,

com os santos do subúrbio

e as fadas sobre a rosa dos ventos,

mergulhados

no rio Ganges da magia extasiante da noite etílica.

E quando a voz aveludada da Paula Toller

nos acordava todas as manhãs

e acompanhava nosso cappuccino

e nossas torradas de pão de centeio

com tomate e queijo derretido,

era como se estivéssemos em uma ilha paradisíaca,

ou na varanda de um sobrado na Tijuca,

que é o lugar onde os montes castanhos sorriem

para os artistas suburbanos;

onde todos se esquecem de suas tristezas

porque podem olhar o Redentor enquanto bebem chope na esquina,

e eles sabem o quanto isso é elegante,

porque mesmo à noite

– até especialmente à noite –,

ao brilho do Cristo que abençoa

os abastados e os humildes

sem distinção,

temos a sensação de que tudo aquilo foi feito

para ser compreendido por gente como nós,

malandros que encontram o Nirvana

na boemia.

(E tantas coisas boas da vida começam com a letra “b”

– bondade, beleza, budismo, boemia…)

Lembro-me de nosso namoro burlesco,

quando corríamos nus pela sala,

brincando como gregos;

lembro-me de quando fazíamos amor sob o céu constelado,

e você, turbilhonante Diana, cavalgando,

como se domasse esse mundo louco

e o pilotasse como a uma nave

pela imensidão do movente universo ao redor,

enquanto Vênus se escondia

por trás de seus cabelos negros dançantes.

(E fazer amor diante das estrelas

não é mesmo melhor

do que só deitar-se e admirar as estrelas,

assim como fazer amor na estrada

não é mesmo melhor do que só rodar pela estrada?)

Lembro-me de como você me tocava

enquanto eu dirigia,

zarpando pelas rotas desse país

como dois mochileiros libertinos,

despontando pelas planícies douradas do Sul,

sabendo que onde estivéssemos

era sempre o topo do mundo.

Lembro-me de como dizíamos que faríamos amor

em cada um dos estados deste berço esplêndido,

onde o mar nos beija e o sol nos visita todos os dias,

e, quando se vai, você pode ouvir

o eco dos aplausos merecidos desde o Arpoador

por toda nossa terra garrida;

e então, à noite, o Cruzeiro resplandecente

guia sua procissão,

seguido das velas acesas da noite sul-americana,

em uma Via Sacra pela Via Láctea,

avisando-nos que estamos apenas pegando uma carona,

que somos todos caroneiros

de uma vida que segue adiante.

E seguiu-se

que nosso amor era como um adesivo.

Se colasse por muito tempo só sairia

se desgrudássemos com cuidado,

e o que sobrasse só sairia com esforço.

E naquela noite em que caminhávamos

até a mais nova boate do bairro,

sentindo os índigos ares noturnos,

calados, e, de repente, choveu de uma vez

uma torrente de lágrimas do céu,

e corremos para debaixo de uma marquise,

ensopados, e seus cabelos pendiam

como uma cascata brumosa,

e nossos rostos úmidos reluziam às luzes da cidade,

como eu quis beijá-la e sentir o seu corpo

frio aquecendo-se ao meu,

enquanto as gotas do paraíso crepitavam

ao nosso redor

e cantavam sobre os telhados – mas não.

Não

mais.

Naquela noite nós já sabíamos.

Fomos

como um vivo clarão em noite de tempestade,

iluminando o céu noturno

com o fulgor rubro do nosso amor,

fazendo da noite dia por um instante,

causando espanto aos que ignoram as forças desse mundo

e admiração aos já iluminados,

e retumbando sobre a terra com um estrondoso trovão.

Mas como todo clarão surge,

fulgura,

e esvai-se,

também nós, que fulguramos,

também esvaímo-nos.

Um dia tudo acabou como uma árvore

que só floresce uma vez por ano;

como uma pintura desbotando-se na chuva,

descolorindo-se

até apenas restar um retrato abstrato

do que já foi.

Não demos mais certo

porque eu era água e você era vinho.

As doses de você

me causavam embriaguez,

e o tanto de mim

não saciava sua sede.

Assim, nossa sangria

ficou insípida.

Fomos um conto incompleto,

uma poesia inacabada,

onde os versos não rimam

e as estrofes descadenciam

– e talvez tudo em nossas vidas,

e talvez até cada vida

em si mesma

seja só uns poucos versos

no meio de um poema interrompido.

Mas depois que rompemos,

e mesmo agora,

não consigo

sentir tristeza ou solidão,

porque quando amamos

verdadeiramente,

mesmo que o amor não mais combine,

o único sentimento que sobra no fim

é a gratidão,

tão íntima

como se tivéssemos nos conhecido em vidas passadas

e tão certa

como se fôssemos nos ver em outras vidas

novamente.

Poucas pessoas podem sentir isso.

A maioria das pessoas teme

amar, pelo fato de temerem perder

o amor.

Não entendem que é irreversível,

um presente sem devolução,

tanto o estar amando quanto o ter amado;

não sabem que o amor permanece mesmo quando

as pessoas se vão.

Mas nós sabemos.

Nós sabemos que o amor

não está nas pessoas.

O amor está

no amar.

Por isso nós levamos o verbo amar

conosco pela eternidade,

mesmo que

não estejamos mais juntos;

mesmo que

nossos carmas tenham se cumprido.

Porque os amores

que vamos conhecendo pela vida

devem ficar guardados

no melhor quarto da memória,

para serem revisitados sempre por nós,

como velhos e distantes, mas inesquecíveis amigos

de viagem.

Na verdade, reservamos

uma parede inteira desse quarto

para estamparmos a coleção de fotos

de todos aqueles

os quais fizemos abrir um sorriso,

como uma coleção

de Budas sorridentes em uma estante,

porque é a quantidade de sorrisos

que guardamos

e levamos conosco

que revela

nossa verdadeira e sagrada riqueza.

E é sua estante a que eu mais visito.

Você sempre foi

o meu Buda mais precioso,

o mais dourado,

o mais sorridente.

E mesmo que você ou eu

descansemos um dia o espírito com um último amor,

o amor que será para o resto da vida,

poderemos visitar

os amores do passado

secretamente,

sem medo,

porque a única coisa concreta,

eterna,

a única coisa

realmente nossa dessa vida,

a única coisa

que nos pertence nesse mundo

é o amor que vivemos.

E noite afora,

independente de que noite seja

ou com quem se esteja,

quando ouço

o silêncio frio da melodia

da mística viola que ressoa

por esses risonhos e lindos campos,

eu irei pensar em algum amor do passado,

sim,

irei pensar em você,

e estarei naturalmente pensando em tudo

– tudo –

o quanto passamos juntos

– até mesmo na dor, porque a dor

faz parte de nós –,

e será como se eu estivesse

assistindo ao meu filme preferido

de novo,

e de novo,

porque todo mundo deseja

uma estória de amor tão boa que mereça

ser recontada

quantas vezes seu coração pedir,

como um livro lido,

mas do qual o leitor não quer se despedir,

e do qual revisita as partes mais saudosas,

e as grifa,

decora-as,

rumina-as

como a última garfada de uma sobremesa,

e então as relê novamente,

e sempre com olhos os mais sedentos

e singelos.

E pensarei

no quanto todos aqueles momentos foram

tão bons que pareciam um sonho revelado,

mas que não se perderão no tempo

mesmo que tenham findado

porque serão como a luz de uma estrela

que já não está lá, contudo ainda

brilha no puro céu de maio;

serão como um Om que ecoa profunda e infinitamente;

e eu me darei conta

de que não enxergava um corpo de barro,

enxergava a alma de uma deusa,

mas não uma deusa para ser adorada

– porque os deuses não querem ser adorados –,

enxergava a alma de uma deusa

porque enxergava a pureza do mundo contida

em uma centelha de amor

que procurou tão somente ser correspondida

com o mesmo puro amor.

E para quem teve a sorte

de encontrar um alguém

com quem dividir o corpo e,

principalmente,

a alma;

alguém com quem conversar até a madrugada

– e inclusive pela madrugada –,

e poder falar sobre qualquer coisa

– qualquer coisa –:

seus sonhos,

seus medos,

seus segredos,

e dos amores de infância,

e rir,

rir,

e prosear ainda mais,

até simplesmente terem ficado

ambos em um silêncio místico,

como crianças empolgadas

em ouvir o apito do trem,

ou como se está

ao calar-se para ouvir

a essência do universo,

com os corações tilintando

como dois sinos de uma catedral,

e as almas expandidas

como dois risonhos mestres do Zen

entre o topo da montanha e a aurora polar,

fazendo saber que esse mundo

é um templo

e nós somos

o fogo do altar;

então um sorriso tântrico irá surgir

no canto de sua boca

e uma lágrima despontará

do canto do seu olho

como uma estrela cadente,

então, se saberá

que o nome disso é

felicidade.

(porque simplesmente

não é possível ser feliz

sem que se saiba,

assim como ninguém vai para o paraíso

sem que se saiba,

e eis uma verdade misteriosa)

Porque enquanto o restante das pessoas

se pergunta

por que a felicidade não é para todos

e não dura para sempre,

nós sabemos

que a felicidade é somente para aqueles

que têm o olhar refinado,

para aqueles que notam

uma joaninha em uma folha,

sentada de frente

para uma gota de orvalho

que contém o reflexo

da infinidade ao redor.

Porque enquanto o restante das pessoas

se pergunta se conhecem mesmo

o amor,

nós sabemos que o amor é

só para quem já acordou no meio da noite

e viu uma aura prateada

contornando suavemente sua amada

como se a própria Lua tivesse

descido especialmente para cobri-la

com seu manto cintilado,

porque todo o universo havia

se concentrado naquele sono,

naquele ser velado

pelo luar dos seus olhos.

Nós sabemos

que são momentos assim

que nos fazem sentir verdadeiros.

E mesmo que esses momentos

acabem um dia,

eles permanecem

em nossas vidas para sempre

de um jeito

transcendental.

Porque enquanto a maioria das pessoas

quer ser lembrada

e deixar um legado para as futuras gerações,

em um simulacro de imortalidade,

nós sabemos

que não somos feitos para sermos

imortais,

mas apenas para

vivermos a vida mais bela possível,

como as flores.

(flores são marcantes não por serem eternas

e sequer se importam

se serão lembradas ou não,

mas são apenas belas)

E enquanto a maioria

parte em uma busca vã

por momentos em que se sintam

verdadeiramente vivos

ou solidariamente úteis,

únicos,

destacados da multidão,

nós sabemos

que tudo isso

não passa também de frágil

ilusão,

porque os momentos marcantes não são

aqueles que nos fazem sentir

únicos,

mas

justamente

aqueles que nos fazem sentir

plenamente

cósmicos.

E só o amor

nos faz sentir cósmicos.

A maioria das pessoas

não sabe disso.

Mas nós sabemos.

Porque amamos,

nós sabemos.

Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 20/12/2018
Reeditado em 10/06/2020
Código do texto: T6531525
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