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AS PALAVRAS POR DIZER ( 1994)

PRIMEIRA PESSOA

Livre como os cavalos nos desfiladeiros, selvagem

tece teias como as aranhas apanhando suas presas

arremete-se por estradas poeirentas

acaricia os pássaros em voo.

Sua solidão não se rompe

nada muda na paisagem de seus olhos

morta de um cansaço em outro além de tudo

a morte anuncia-se em lampejos de luzes tremeluzentes.

As cadeias em círculos concêntricos

nunca saiu de onde nasceu

como árvores amarelecidas pelo tempo

as palavras embotam-se

os objetos permanecem

as ruas escondem mentiras

sua sensibilidade controla o empobrecimento da verdade

mente a todo o momento.

Prisioneira em seu túmulo confortável e triste

prisioneira seus laços cadeias elos sem fim e alegria

ousa e recua em táticas desconexas

apenas vai sendo carregada pelo vento em seu rosto.

Seu luto esvai-se em pérolas jogadas aos porcos

seu nome parece não ter significado

sua imagem, nos reflexos das janelas, é lastimável

em solitário abandono dentro de si mesma.

Meus dedos doem

minhas mãos finalmente se acalmam.

PARA AS MULHERES DO MEU PASSADO

quem és tu, ó mulher sem rosto

de onde vens com teus olhos tristes, perdidos no escuro das noites dos campos

quem são teus ancestrais, o que fizeram em dias de sol, nas tardes de inverno

terás sido feliz em um leito largo

terás amado e sido amada como quiseste e sonhaste

conheci teus filhos e teus netos, conheci um pouco tuas dores

sentei em teu colo nas tardes de sol de inverno, brinquei com tuas rugas a descobrir teus traços, a conhecer minhas origens de menina sem rosto

vejo teus filhos mortos

vejo-te, mulher enigmática de olhos duros como as noites nos campos seus temporais e tempestades

o que me legaste em teu testamento de sangue

porque deixaste-me tua dor a resolver em minha vida

quem és tu, ó mulher androide

de onde vem tua dor solitária como as noites dos campos

que fazes nas tardes de sol no inverno

erras como as mulheres de tua vida

porque procuras fugir dos desígnios do tempo

foste extemporânea nas ruas das cidades, perdida em teu tempo

porém, o legado teu, ó mulher ansiosa, resolve-se em nãos, em transmutação das mulheres que carregas no sangue.

AMPULHETA

há muitas gerações lembro do silêncio dos campos

de luzes de velas tremeluzindo aos ventos dos pampas

sou homem, sou mulher

fui criança, velha

morri mil mortes e renasci

venho mais uma vez sob o signo de minhas origens

trago nas veias o sangue ancestral de homens e mulheres

simples e honrados

trago em meu coração o grande amor ao homem e à natureza

carrego a desordem de mil vidas, de sofrimentos atávicos

olho-me e vejo na profundeza de meus olhos a dor de vidas passadas

tenho uma missão a cumprir

tenho nome e mente de mentes que não lembro

sob a luz azul de uma vela enxerguei-me velha, de outros tempos

jovem que já fui, meu corpo diz quem sou e não significa nada

carrego um passado todo o meu tempo

busco de todas as maneiras conhecer esta alma atormentada que me habita

busco a identidade perdida em ventanias e chuvas fustigando a terra

terra que cultivo e por onde andam, em perfeita harmonia, os bichos e onde dormem as pedras

vim em forma de água,

banhar com minhas lágrimas de solidão e tristeza o chão por onde caminho e nasce o mais puro pasto

não estou só neste momento. venho acompanhada de inúmeros mortos que carrego no sangue

meus traços são a mistura de homens e mulheres que amaram deus e a vida

anseio o encontro com a realidade material do corpo

traduzo meu espírito em carne, ossos e matéria

procuro dar forma às impressões do que vejo e sofro

busco meu complemento em corpo e alma

que pode ser o homem ou simplesmente a expressão de meus sentimentos mais puros, o amor e a minha pura alegria de estar viva

abandono minhas armas, desarmo minhas mãos suadas de ansiedade e medo

torno-me então, apenas a filha

pai, mãe e família

deixo de ser vegetal, mineral e animal. tenho minha própria alma

o tempo congela-se neste momento sublime de iluminação pessoal e intransferível

a ampulheta indica que escoa, mas em meu coração cristaliza o sempre, o eterno.

INFÂNCIA

vim de muito longe, lá de onde só havia o campo, sem horizontes

acostumei-me, em criança, a decifrar as pequenas luzes do Passo do Tigre

vizinhos e parentes distantes

cresci solta nos pagos. brincando com ossos de vacas e ovelhas

corri, em total liberdade, por avenidas de eucaliptos

com minha pequena trouxa a esconder-me nas sangas, onde tirava os sapatos e brincava nas águas puras do Camaquã

montei cavalos xucros, recolhi às mangueiras vacas de leite. criei pequenos guachos com mamadeiras e afagos

subi em árvores, recolhi caturritas caídas de seus ninhos

fui picada por cobras

à noite, ouvia o vento assobiar, triste, por entre as árvores

não imaginava que pudesse haver algo além daqueles cerros, daqueles marcos das porteiras

não havia limites nos passeio até a cacimba

andei descalça pela terra preta que circundava o chalé azul de madeira

comi butiás no pé, quebrei amêndoas com pedras

aprendi a ler e a escrever, com minha mãe, no “quartão”- restos da casa original

criei-me, em convivência pacífica, com peões e seus filhos

ajudei a fazer pão, comi milho assado e toquei a sineta no almoço e jantar

matei formigas, à noite, com meu pai. aprendi “as coisas da vida” com meus irmãos, entre sussurros e risadas e um certo espanto

assisti, assombrada, a “carnear” ovelhas e vacas e a banhar o gado

ouvi, sem interesse, os “causos” dos homens nos galpões enquanto chimarreavam

comi churrascos de chão e tomei água das cambonas pulei arames e trepei em tramas e moirões

recolhi gravetos para o fogo e dancei em torno das fogueiras

passeei em reboques entre pelegos e couros de bichos mortos

escondi-me nas sacas de lã na tosquia das ovelhas e me fascinei com a “máquina esquiladora”

pesquei lambaris nos riachos com minhocas como iscas. cacei mulitas nas noites enluaradas

pulei e saltei nas plantações de trigo como a menina que fui

arranquei o rabo dos lagartos e assustei os avestruzes

nadei e mergulhei no “poção” nos dias quentes do verão e sonhei em conhecer o mundo nas noites frias de inverno em frente às lareiras

abandonei o Boqueirão de criança e as Três Tarumãs da adolescência, conheci outros lugares

mas as reminiscências voltam a me acompanhar enquanto olho, distraída, estradas com seus campos que me levarão para tão longe do passado...

Depois de Bruto de fusão, fiquei quase 10 anos sem escrever poesia, Em 94 comecei a fazer psicanálise e apoesia ressurgiu em minha vida e nunca mais me abandonou.

Magda L Carvalho
Enviado por Magda L Carvalho em 22/11/2021
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