Diário noturno


O que eu vejo, à minha frente, é uma parede com uma porta fechada. Mas eu sei que, por trás dessa parede, existe outra parede com uma grande janela envidraçada. Além dessa janela um quintal com árvores flamboyant, primaveras, mangueiras e um coqueiro. Entre elas eu sei dos vaga-lumes piscando luzes ingênuas e ternas. Cercando o quintal um muro, por trás do muro uma estrada de terra que chega numa lagoa de água turva, turva de musgo e segredo. Além da água turva uma restinga de areia branca e espessa, salpicada de arbustos que amam o sol e o vento, o verde seco, a flor de cactos, nossa flor mandacaru... entre os arbustos eu sei das aves de asas e bicos fortes de urubus e gaviões famintos. Além da restinga eu sei do mar grosso e bravio com ondas cheias de espuma e areia.

Por cima disso tudo: a noite. Por cima de tudo que eu sei e que amo, dos meus vaga-lumes, do flamboyant que abraça a primavera bem junto da minha janela, do muro que me cerca, por cima da estrada de terra, da água turva, restinga branca, nossa flor mandacaru, dos olhos dos gaviões, do silêncio dos urubus.
Por cima das ondas cheias, que vêem e que vão, jogando a rede na areia arrastando de volta pro mar suas conchas, seus grãos, a sua vieira.

Eu, que tantas vezes não sei definir o que sinto, sinto a noite passando por cima de mim, com sua sombra de asas vai arrastando tudo pro mar, como oferenda leva o meu pensamento que, nesse momento, não sei se é semente, um cisco de concha, ou se da areia é só mais um grão.