Madrugada

Era uma madrugada de lua cris. Eu caminhava pela orla quase a pensar em nada, mas acorrentado às sombras de estranhas sensações. O vento frio que soprava sequer incomodava e os pingos rarefeitos de uma chuva que eu não via, apenas me embaçavam os óculos. Eu não ligava. Desde jovem, me acostumei às neblinas que haviam em meus olhos. Sempre tive a impressão de que não via senão a silhueta das coisas e pessoas. Minha maneira de ser sozinho vem dessa miopia da alma que não carece de lentes porque o essencial que existe nos seres não está na nitidez do lince, mas no que está por trás, naquilo que se desconfia.

Eu seguia sem me dar conta do que me rodeava. Apenas a noite me acompanhava e dava o tom da minha solidão. Um cachorro atravessou para o meu lado, e naquele olhar que era só pedidos, percebi que eu plagiava a sua tristeza. Preferi acreditar, naquele momento, que a gota escorrida pela face era apenas o orvalho da madrugada. Afaguei-lhe a cabeça por instinto, e ele, movido pela gratidão ao carinho recebido, juntou-se ao exército do homem só.

Acho que não sei fazer carinho e, talvez por isso, eu seja esse cemitério de nomes sepultados em mim. O cio de uma fêmea me roubou a companhia. Percebi ali a minha falta de faro e creio ter compreendido as sepulturas que carrego. Sim, todas as mulheres que tive me abandonaram porque cansaram de ser sozinhas ao meu lado. Sempre fui triste mas nunca lamentei por isso. E no inclusive agora não sou eu, mas é a vida quem chora. E em madrugada de lua cris, as lágrimas rolam como os uivos de lobos evocando a noite como um manto para o frio. Lua de tarot a emergir os fantasmas que me habitam as masmorras.

Desde cedo me declarei poeta, e a poesia me chega como forma de me encorpar os silêncios. Não uma válvula de escape, mas a autoclave de tudo o que desconheço de mim. Talvez eu exploda, mas ao menos assim eu serei o vapor que se dissipa indiferente ao mundo e seus acontecimentos.

Continuo andando com a indiferença dos que não têm medo. O que será aquela luz no fim da praia? Como eu, parece hesitar em desafiar a noite tão tímida se oferece. Aproximo-me dela enquanto vou ficando para trás. Descubro o único quiosque aberto num raio de sei lá quantos quilômetros. Homens e mulheres bebem. Uns, suas estranhas alegrias; outros, suas reais angústias. Peço uma cerveja com a sede de quem quer se livrar da própria ausência. Uma outra, e mais outra, e o cigarro derretendo no cinzeiro. Quando percebo, o dia começa a acender. Atravesso a rua e pego a primeira kombi para aqueles que iniciam sua jornada e volto para casa, humano, demasiadamente humano.

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 23/03/2009
Reeditado em 26/03/2009
Código do texto: T1501270