Hoje

Hoje há algo diferente, um cheiro familiar que eu nunca senti, uma chuva fina que se transforma em véu, e depois, apenas chuva. Não é diferente, nem poderia ser, como nunca será. É apenas nostalgia, o espelho que nos faz ver o que passou. Há que se ter cuidado com isso. A miopia que nos cega, a fome que nos devora, o tempo que não pára. Há que se ter cuidado.

Quando sinto sono, me deito no passado, a fome eu mato agora e o desejo vai sempre à frente, em tudo que eu ainda não vivi, por isso, há que se ter cuidado.

Deixei pegadas, pode ser que alguém me siga, me alcance, me renda. É preciso ter cuidado.

No medo da chuva há algo mais profundo, um desabrigo, um desconsolo, um frio estranho, escondido sob a pele, correndo nas veias, minando os pulmões. E como sempre, é preciso ter cuidado.

Faro, 07/02/2003

Nuno Négrier
Enviado por Nuno Négrier em 13/06/2006
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