A ilha do beco

Ano acabando. Férias por perto. Capital parece não parar. Nem a cidade. Nem o sistema. Feito formigas trabalhadeiras sobre montes de papéis e de contas nos pomos sol a sol. Os afetos se perdendo no passar do ponteiro. Os fios brancos se acentuando ao passar do pente. As gavetas se entupindo. Os ralos também. As ruas fervilhantes comprimindo o tempo. A paisagem em seu movimento linear. Estática. Os prédios. As avenidas. As janelas. Os edifícios. O concreto argamassando os sentidos. As emoções se endurecendo a prazo. A cidade. Ar de escapamento. Poeira de desilusão. Buzinas de realidade. Almas em perpétua autocontravenção.

...

Dizem que beco é lugar ruim. Estranho. Perigoso. Proibido. Escondido. Rua estreita e curta. Às vezes, sem saída. Toda cidade parece ter seus becos. Até as mais planas e planejadas. Brasília das ruas largas tem também suas ruelas. No centro mesmo da cidade, nos lugares ditos nobres. Para muita gente beco é local assustador. Para outros, mera passagem. Pessoas também têm suas galerias e ruazinhas.

...

É dezembro. Soturno. Chuvoso. Cinza. As noites, contudo, sempre negras. Berço de renitentes.

...

O mapa indica na estreiteza da noite aonde atravessar o espelho. Mudar a rota. Logo atrás de uma grande antiga avenida, está a ilha. A casa com sua fachada suave e luzes chamejantes. A delicadeza se alternando à intensidade. Mesas cuidadosamente postas. Elegância e simplicidade. Nos olhares sorrisos. No aroma, banquete. Artistas. Dançarinos. Pintores. Atrizes. Poetas. Cenógrafos. Professores. No palco estrelando a cumplicidade de afetos. Encontro.

...

A ilha do beco acolhendo a possibilidade da vida. Páginas abertas para outras histórias. Capítulos de prazer. Nas entrelinhas vozes de liberdade. Nas ilustrações tradução de outra dimensão de tempo limpo e feliz.

...

Naquele beco tem uma casa, uma ilha, uma passagem para além do comum, para onde se vive.

Solange Pereira Pinto
Enviado por Solange Pereira Pinto em 02/08/2006
Reeditado em 02/08/2006
Código do texto: T207268