dor de saudade
Quando surge isso que parece fome, o vazio que acelera os nervos, o descompasso que antecipa o caminhar. Essa força, depois de tanto tempo sepultada, volta novamente para abrir uma várzea no peito. O não saber por onde anda, o não suspeitar com quem acordas, a dúvida penetrando nas têmporas: será que você sente o mesmo? E se sentir, terá coragem de dizer a mim ao mesmo tempo em que eu, comovido, me vire para sua cara num encontro casual e diga meio sonâmbulo: estou com saudades. Saudade. Baita palavra amarga que só deveria ser proferida no plural. Ela é muitas pequenas coisas, como larvas, pequenas coisas que incomodam como ácaros em quarto de asmático, como plantas subaquáticas, pequenas coisas que vão se multiplicando por dentro e dando lugar ao que antes era intestino e fígado e ossos e pele. Não se pode conviver com essa pequena, plural e incômoda coisa sem ensaiar telefonemas, sem esquadrinhar qualquer assunto idiota que suscite e-mails pseudo-interessantes, sem elaborar mensagens para depois apagá-las ou mesmo sem escrever no meio de um monte de trabalho importante este texto idiota e meio melodramático só para espantar o vazio e concentrar a atenção num ponto que não seja aquela primeira letra do seu nome, que graças aos deuses filólogos foi abolida do alfabeto oficial. Não se pode conviver com essa pequena coisa, precisa de outra pessoa pra criar esse bicho, alimentá-lo e dar senso de autoridade. Parece que vou morrer do coração. Pausa. Com tantos cigarros e angústia e cafés da manhã corridos por causa do atraso de todas as manhãs porque, claro, não dá para dormir com essas coisinhas acordadas dentro de você. Saudade é um bicho ruim de morrer como percevejo, um objeto inquebrável, um substantivo abstrato que não se apaga do dicionário. Saudade mata mais que o trânsito.