A Cerca
 

Um alinhamento de bambus secos, apretejados pela ação mofadora do tempo e da água que vem do céu e que acabara de chegar com o quase agora, ainda formando pequenas gotas nas dobraduras do verde e do vermelho. E lá vai a quase menina e a quase mulher duas em uma, caminhando em cima do solado anabela de  suas sandálias de tiras cruzadas, calçadas no escondido dos olhos da mãe que se perdiam fixados no conserto das roupas de tantas crianças irriquietas. E lá seguia a menina, ainda não de todo mulher saltando por sobre as poças reflexivas da água da chuva, buscando a solidez onde só havia a mistura de terra e água afundando os saltos desequilibrados. Barro. Barro em seu estado mais puro. Mas a menina não se deixava abater e seguia já imitando, na tentativa, os passos da mulher que breve se mostraria. E lá vai ela se aproximando da cerca e olhando daqui e dali, recolhe com pesar mas sem hesitação duas flores, só duas que mais não ousa macular a beleza da cerca. Escolhe as que supõe serem as mais belas, as de cores mais firmes. Retira-as da cerca uma a uma e em cada,  um sopro leve eliminando as gotículas. Coloca-as em cada uma de suas róseas e delicadas orelhas e as flores, jóias da natureza se transformam em jóias verdadeiras, em brincos de princesa, em brincos da princesa que sai caminhando com seus primeiros trejeitos de mulher rumo a casa da avó onde os sonhos eram possíveis.

 
Muitos anos depois a mulher já agora tendo caminhado a maior parte do seu caminho na vida procurando encontrar dentro de si a menina perdida se reúne com as amigas em volta de uma grande mesa. E ali, um papel cartão estendido a sua frente, fecha os olhos e busca inspiração. Ela precisa fazer um quadro, uma pintura, pode usar os materiais que quiser,  lápis colorido, giz cera, tinta, qualquer espécie de tinta, está tudo ali a sua frente.Ela precisa fazer uma pintura, um quadro que mostre um momento de sua vida que tenha se transformado em algo mais do que uma lembrança. Um símbolo, um sonho.  
 
Ela fecha os olhos e desaparece no tempo e seu coração volta lá, bem longe, olhando a cerca encantada por onde se espalha o verde salpicado de vermelho, dezenas de florzinhas vermelhas, os brincos de princesa, sua flor preferida. E quando ela retorna aquela sala, na varanda da casa de sua amiga, ela só volta pelas metades porque uma está ali e pega os lápis cera com força e firmeza, o lápis verde escuro e o lápis vermelho e transfere para o papel toda a emoção que está vivendo. Ela chega inteira e colore o papel com o entusiasmo de uma menina e depois coloca na parede para admirar a sua obra prima e única – uma cerca de bambu coberta pela folhagem verde salpicada de vermelho, abstração que só ela consegue ver. Mas que importância pode ter isso?