Me explica, por favor!

 

Às vezes a tristeza entra tão profundamente na vida da gente que é um estranhamento total. Está certo ficar triste com as coisas que acontecem na vida que vivemos, com as pessoas que amamos e nisso não se põe vergonha nem falsidade. Mas se encher de tristeza a ponto de ter vontade de chorar só porque leu alguma coisa que nem é verdadeira de verdade, apenas uma história inventada? É demais, é de pensar que tem alguma coisa errada com a cabeça da gente, pois já não bastam os males da vida, sofrer agora por causa de alguém que nem existe? Pois é, isso acontece. Tem coisas que leio que me dão tamanha tristeza que parece estarem acontecendo agorinha mesmo aqui bem pertinho. É o caso de Sorôco. Pois me deu uma tristeza doída hoje, relendo a história de Sorôco que até parece eu nem a conhecia, como se fosse a primeira vez.

Não sei se vocês conhecem Sorôco, sua mãe, sua filha.

Eu conheço. É uma história dentro das Primeiras Histórias que Guimarães Rosa escreveu.

Talvez porque ele tenha ambientado a sua narrativa nas proximidades de uma estação de trem e eu tenha vivido parte importante da minha vida junto a uma estação de trem, todas as vezes que eu a leio é a estação de trem de Arantina que vejo. E as pessoas que chegam para ver o embarque da mãe e da filha de Sôroco são pessoas que conheço. E quando Sorôco chega de braço dado com as duas eu vejo os três atravessando a ponte, mas não existe ponte na história. Mas eles vêm do lado da ponte e eu estou junto à multidão esperando e o trem já está lá embicado em direção a Andrelândia porque eles vão para Barbacena e é bom que se explique, Barbacena era para onde iam os doidos sem cura e de Arantina só se chega a Barbacena através de Andrelãndia, pelo menos era assim no tempo de minha vivência por lá. E nem importa que não exista trem de Andrelândia para Barbacena, que nunca tenha existido e que os caminhos de hoje sejam outros, mas eu não consigo criar um cenário diferente.

É tão triste a imagem que visualizo dos três chegando porque está na hora do embarque e elas vão para não mais voltar. Mas até aí eu agüento bem. Mesmo ouvindo as duas cantarem uma canção que não existe, a tristeza ainda não me faz chorar.

E tudo vai acontecendo como em um filme já visto tantas vezes na vida que vivi: o trem apita e se vai e as pessoas voltam para suas casas conversando, coisas do dia a dia a qualquer hora que o trem passasse.

Mas aí Sorôco vira as costas e se vai e o trem com grades nas janelas nem mais tem importância, o trem já foi, o tempo de Sorôco, sua mãe, sua filha passou. Sorôco agora está só. Ele está só e ele canta, aquela mesma canção que nunca foi composta, a canção que ninguém entendia, mas que sua mãe e sua filha cantavam juntas e no canto ele coloca toda a sua dor, todo amor e solidão que está sentindo. E de repente todos o seguem cantando a mesma canção e na minha imaginação são as pessoas de Arantina que conheço que cantam e o seguem e eu começo a cantar também, cantar baixinho uma canção que desconheço. E enquanto meus olhos lacrimejam, sinto uma vontade estranha de ultrapassar aquela multidão e lhe dar o braço.

 

(texto escrito em homenagem ao maior escritor mineiro de todos os tempos, Guimarães Rosa, capaz de nos encantar até as lágrimas com a magia de suas palavras)

Antiga estação de Arantina, hoje desativada.