O Cortejo






A menina costumava ficar ali, no alpendre em L, da casa de esquina. Assentava-se na modorra, do lado menor do L, no rústico banco de madeira e ficava olhando o não-movimento por minutos tão compridos que até se pareciam com horas. Mas de vez em quando ela era sorteada com a sorte de ver todos passando, ou sorte menor, ora um ora outro, materializando ali no dia ordinário as fantasias que um dia iriam alimentar sua mente. Hoje, bem longe daquele alpendre, ela ali se aboleta, em qualquer lugar onde esteja, em qualquer hora do dia e os faz passar um a um como em um cortejo. O cortejo dos miseráveis de Arantina. De onde veio essa lembrança dessa vez, tão forte e real?

 

Eles estavam na Praça fazendo arrelia, Os Loucos Varridos, troupe da cidade vizinha de Oliveira. Armaram seu circo no fim da Praça e se soltaram entre as pessoas atarantadas. Foi por isso que dessa vez ela se lembrou dos seus e os colocou no meio dos outros e mais tarde, enfileirados, descendo a rua de sua casa. Todos eles loucos varridos ou eternos sonhadores em um mundo de fantasia? Ou apenas a pior face da miséria humana, os “típicos’ de cada cidade, cumprindo o seu carma evolutivo”?

 

Havia o Jabá, um mulato magricela carregando no ombro uma vara comprida com a qual chuchava os bois invisíveis que também puxavam um carro invisível. Ele atravessava a pequena vila de um lado a outro e ela não se lembra nunca de tê-lo visto voltando.

 

E a Idalina, que lembrava o caipora com seus pés tortos e um rosto triste e feio, rosto de bruxa malvada e arrependida, com as palavras presas na boca sem nunca poder soltá-las e as unhas dos pés e das mãos como garras sujas?

 

E Dona Rosa e seu Virgulino, ele, menor que a menina, pareando a cabeça com a cintura da mulher, sempre de paletó e chapéu, andando atrás dela, que o conduzia de porta em porta recolhendo víveres. Contam, mas ela não chegou a presenciar, que de um casal se transformaram em um triângulo e assim desciam a rua novamente todos os dias, até que novamente se tornaram um par porque seu Virgulino se foi, calado como sempre vivera.

 

Ela não sabia ainda, quando os via passar, que estava se alimentando deles e construindo o seu mundo de fantasias onde palavras mudas tomariam forma encarreiradas em frases e parágrafos para contar suas histórias em tempos tardios.

 

Onde andarão eles agora, em quais mundos, já libertos de sua roupagem miserável? Terão cumprido o script que lhes foi determinado e puderam enfim romper as amarras que os prendia assim, de forma tão miserável a esse mundo? Ou seus espíritos continuarão presos em corpos incomunicáveis? Que crimes teriam cometido em tempos de antanho, tão violentos a ponto de se sujeitaram a viver de forma tão infame para a raça humana, buscando uma brecha na eternidade para se libertarem?

 

Eu não sei nem a menina sabe. Fomos incapazes de descobrir esse mistério, mesmo tendo ele sido inquietação desde o começo. Terá sido esse o carma, o não compreender e nada poder fazer?

 

E a menina continua sentada na varanda com os braços cruzados, desanimada, porque sabe que o tempo se transforma e o tempo de estar aqui caminha rápido para um novo recomeço. E o mistério ainda não foi resolvido.