O que Antoine não sabia - Parte 3

A casa estava caindo aos pedaços. Telhas soltas deixavam a luz e água da chuva entrar sem pedir licença. Era difícil decidir por onde começar a arrumação. Quando teve aquele princípio de incêndio, no final do inverno passado, muita coisa acabou se estragando com toda a água que foi jogada pelos bombeiros. Mas o porão não fora atingido, era como se fosse um lugar santo, intocável pelas mãos dos homens e pelos olhares de Deus.

A Gorda, irmã caçula de Antoine, brincava lá desde seus tempos de menina. Uma das coisas que mais gostava de fazer, era descer até o porão sozinha, carregando uma cesta cheia de bonecas, e preparar intermináveis banquetes imaginários. Dos pratos mais simples às iguarias que só eram acessíveis aos nobres, tudo era servido por um exército de eunucos roucos. Nunca soube explicar o motivo de serem roucos, mas isso devia fazer parte do ritual. A Gorda preparava com esmero ímpar cada lugar à mesa, que também só existia na sua varanda imaginária. O vinho. Este sim merece um detalhamento especial.

Todas se embebedavam até não se aguentarem mais em pé (e nem sentadas) nos banquetes da Gorda no porão. As bonecas literalmente devoraram cada gole daquele vinho, envelhecido em tonéis de carvalho,

como se fosse a água benta de um andarilho do deserto. Copo após copo, se entorpeciam feito dançarinas de cabaré barato de beira de estrada. Esqueciam que não passavam de meras e imóveis bonecas de plástico para se transformarem em bailarinas. Daquelas que voam na ponta dos pés feito folhas sussuradas pelo vento de outono.

E começavam a dançar. Tímidas de início, passavam a ocupar todo o espaço do porão como se fosse um palco do tamanho do mundo.

Davam cada passo com a maestria de quem conhece cada artelho desta dança, de quem é cúmplice de cada movimento libertado pelos seus músculos. Todas pareciam que tinham ensaiado desde seu primeiro dia de vida, tal era a harmonia dos seus passos.

A Gorda via aquela algazarra metódica com absoluto êxtase. Nada era para ela mais forte ou ancorante do que ver suas bonecas rasgando as amarras e rompendo o hímen que as faziam suas reféns.

(continua)

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Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 01/04/2011
Reeditado em 03/04/2011
Código do texto: T2884153
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