VÉSPERA INCOMPLETA PARA LEMBRANÇAS

Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano' aborda a questão do pensamento inacabado e noz diz: “O poeta antecipa qualquer coisa do prazer que o pensador tem, ao encontrar uma idéia fundamental, e, com isso, torna-nos cobiçosos, de modo que nós tentamos apanhá-la; esta, porém, passa, esvoaçando, sobre a nossa cabeça e mostra as mais belas asas de borboleta... e, contudo, escapa-nos.”

Da mesma maneira fogem de nossas mãos gestos que gostaríamos de reter pela sua beleza. Quem de nós não gostaria de congelar vivo o melhor ou os melhores momentos de nossas vidas? Quem de nós não gostaria de guardar o prazer macio de um beijo da pessoa amada ou o doce gosto do chocolate durante um inverno em nossas bocas e ressuscitá-lo em hora adequada? Guardaríamos assim os momentos que fazem a eternidade, mas se pudéssemos fazê-lo teriam o mesmo valor? Será que não está exatamente em sua efemeridade a medida de nosso crescimento e o motivo de nossa vitória ou derrota? O certo é que precisamos desses momentos de poesia, dessas asas de borboleta que pairam sobre nossas cabeças, desses pensamentos inacabados porque nós mesmos somos inacabados, incompletos. Mas convém que não esqueçamos que antes da borboleta nascer houve o casulo que abrigou a lagarta, houve a transformação, a incubação e, mesmo depois de transformadas, há borboletas cinzas, pretas, transparentes, existem borboletas com várias cores, formas e tamanhos... A liberdade é que lhes oferece o céu e os jardins que perfumam seus dias e assim agindo é que muitas nos perfumam os olhos de curiosidade e encantamento.

Ao fim de cada ano ancoramos nossas despedidas como borboletas ou lagartas e sobrevoam sobre nós pensamentos e emoções que ainda se completam, nos completam e costumamos cognominá-las por lembranças. Algumas, de maneira breve e circular, nos rodeiam diuturnamente durante um tempo; outras passeiam pelas janelas infinitas do desconhecido e voltam a descer as encostas de nossos dias como ovelhas que reencontram o pastor. Alegria? Tristeza? Partes da vida, pedaços de nossos corpos espirituais que flutuam nos ares e no mar de mistérios que nos revelam ou nos escondem, mas que inegavelmente nos pertencem (ou pertencemos nós a eles?). Em mais um fim de ano esses pertencimentos-perdas nos evocam e mexem com a estrutura de sustentação do nosso ser. Alguns nos fazem reavaliar a profundidade do mar onde temos navegado, onde temos colaborado com pequenas gotas salgadas de ausência, lágrimas de reconhecimento de nossa pequenez, roupas líquidas de nossa intimidade ante as belezas de Deus.

Mais um ano em que muitos de nós almejam que cheguem navios em festa de cores e imagens, dilatando os horizontes de felicidade. Do ontem, chegam as mais variadas cartas molhadas pela maré, dependentes das luas às quais nos expomos. Navegamos o agora e aguardamos pelo amanhã torcendo para que ele chegue como sorriso e presente de Deus. O simples fato de chegar já é um presente, um poema. O desconhecido espera por nós, pelos nossos projetos, pelas nossas orações. Façamos a nossa parte. Afinal, há pessoas que serão sempre presentes independente do corpo. Há viagens que nunca faremos, mas necessitamos sonhá-las. Há momentos que nunca chegarão, mas precisamos persegui-los porque é sempre meia-noite, véspera do novo, quando nos dispomos a ir ao cais, a sair do casulo, a entender borboletas e poesias, a olhar o mar e viajar.

Feliz Viagem em 2007 e um grande abraço.

Tempo não é aparência dos anos que se vão

e sim a eternidade dos momentos que ficam.

Ruberval Cunha
Enviado por Ruberval Cunha em 31/12/2006
Código do texto: T332787