Lascas*

Decidi. A ti, deixarei o relato das horas meias de fome e sede e os entalos que me fizestes engoli, quando minha retina era invadida por rebanhos de luas em noites frias... tão frias que o orvalho nascia cachoeira salgada nas pedras de minha face.

Deixarei as fotos dos caminhos que nunca percorri; os risos gravados em um vinil para que tu possas jogá-lo ao lixo se quiseres, ou pendurá-lo na parede como relíquia de um tempo ultrapassado e antigo, pois não há mais onde tocá-los. Mas se tua lembrança de mim for tão nítida (como tola penso) poderás ouvir estes risos e também o meu pranto ao fechar teus olhos; o barulho dos trilhos de um trem sem gare, sem condutor... sem nós.

O vinho deixarei nas taças, aquelas com a digital de nossas bocas na margem, e lembrarás o quanto nos afogamos no tinto emergindo ainda mais vivos.

Embrulharei com cuidado dois espelhos com a minha imagem. A mulher que fui e a que sou hoje.

Minha infância deixarei em um desenho vivo! Guarda-o. Fecha-o aos sete versos, posto que talvez seja a única coisa alegre que eu tenha e que antes de ti tenha valido a pena.

O que sobra de mim é a fumaça dos cigarros, névoa que dilata infinitamente as falhas, o ridículo no monóxido de carbono, o escuro, o silêncio... e isto não se tem como herança...

Gladys
Enviado por Gladys em 15/12/2011
Reeditado em 31/10/2012
Código do texto: T3390740
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