O VINHO E O POEMA

Úmidos, turvos, os olhos observam quadros na parede. O cálice de vinho alça-se, agitado, quase translúcido. O rubi dança em sua mão trêmula. Recorda as dezenas de vezes em que a turma saudava o primeiro gole: “Arriba, abajo, al centro y adentro!”. E todos bebiam o gole da alegria. Desta vez, sozinho, cada gole desce plácido, dolente, marcando o paladar com iniquidade. A mão fraqueja em sua função intelectiva e o desejo freme saudades. São as imprecisas silhuetas dos casais de amantes através dos vitrôs e as sombras nas paredes do bar que... É o mergulho insone na imagem da amada que faz o sangue da uva tão precioso... Pupilas giram nas órbitas, contemplam um não-sei-o-quê. É mágico o momento do equilíbrio: o real da ausência e a porta do bar (doida sobre os batentes!), o dia moreno, cachos de sol na calçada, na boca o mel ausente, somente o áspero cabernet sauvignon na memória da língua. Um pé-de-vento furta o guardanapo em que o poeta garatuja o momento. É lindo de ver como ele traceja piruetas no ar! E o solitário, de olhos rútilos, trôpego, tapeia a folha de papel, como se esbofeteasse o mundo. Depois, limpa o vinho do canto da boca e a beija, sem escárnio. Há um brilho diverso nos olhos e um pré-suicídio em seu próprio tempo. Apoia a cabeça sobre a mesa e, ao dormir, esconde o mapa do tesouro junto ao coração triste.

– Do livro O AMAR É FÓSFORO, 2012.

http://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/35909