"De que vale o delírio dos olhos se eles se fecham no que os lábios se tocam?"

"De que vale o delírio dos olhos

se eles se fecham no que os lábios se tocam?"

(autor desconhecido)

Sem que pretendamos generalizar, permitimo-nos, alicerçado na alvura do cabelo – testemunha imutável de irreversíveis e longevas vivências – sedimentado nas marcas faciais que delineiam perfis de experiências temporais, e conduzido pela visão que, após vislumbrar horizontes sem limites, hoje se faz baça, afirmar, sem temor ao crivo de insensíveis censores, que estamos nos tornando peregrinos num deserto em que proliferam a materialidade, a indiferença, a superficialidade e a frigidez. Trôpegos e sedentos de ternura, cambaleamos, ziguezagueando ao encontro do oásis que, constantemente, se distancia ou dele nos afastamos.

O derrotismo e o pessimismo são funestos, destruidores. Contudo, a verdade é incontestável e dela não podemos fugir. Onde estão nossos sentimentos de afeto, carinho, amor, amizade, e respeito? Perderam-se dentro de nós ou nós os perdemos? Calaram-se, sufocados pela impassibilidade? Naufragaram no caudal da apatia?

Tempos houve que retínhamos, na arca de nossas recordações mais caras, expressivas relíquias sentimentais. Ficávamos com os pelos hirtos ao relembrarmos o primeiro beijo, muitas vezes roubado. Ingênuo e cândido, furtivo, consumado sob o manto da castidade, numa sessão cinematográfica, à precaução do “lanterninha”; num até breve, acobertado pelo luar, ao fechar-se o portão do jardim, ou quem sabe no recreio escolar. Hoje, numa só noite, aos arroubos etílicos, chegamos a ter dez ou quinze primeiros beijos, em lábios distintos e dia seguinte, talvez pela pluralidade, não nos recordamos de um só.

Ah! bons e inesquecíveis tempos de nosso primeiro beijo e de outros tantos, após o culto, atrás da igreja interiorana. Na excursão de final de ano. Na festa de formatura. Nos folguedos juninos. Na revelação do amigo oculto. No piquenique do grupo de jovens. Naquele baile de carnaval em que Pierrô, Arlequim e Colombina agregaram-se, sem ciúmes, à égide momesca, na profusão multicolor de confete e serpentina. Lugares e momentos tão nossos, só nossos...

Contritos, os olhos cerrados, balbuciávamos preces de gratidão à ternura da voz e das mãos maternais. Pouco antes de adormecer, percorríamos os pomposos salões de castelos encantados. Povoavam nossos sonhos arrojados príncipes e deslumbrantes princesas. Juravam amor eterno e até eram felizes para sempre. Cândidas mãos ajustavam as cobertas, e um beijo de boa noite envolvia-nos na aura angelical. O labor desmedido privou-nos de fraternais convívios; a televisão e o computador recebem mais atenção que os filhos e cônjuges. Não queremos ser interrompidos, e nossos lábios silenciaram às preces, aos contos, aos diálogos, às confidências e principalmente aos beijos.

Indiferentes ao perigo, púnhamos à prova nossa habilidade circense. Figueiras frondosas, muros, escadas, e telhados abrigaram nossa ousadia e intrepidez. Roupas puídas, joelhos e cotovelos esfolados. Cicatrizes que foram banhadas com lágrimas. O consolo, o beijo, e a certeza de que “até casarmos, os ferimentos já estariam sarados”.

Quão sublime o é o beijo dos e nos filhos que voltam após longas viagens. Noites insones. Tilintares que despertam madrugadas, palpitações que chegam à boca, portas que abrem cortinas de apreensão, o reencontro, o beijo. A definição do caminho na conquista profissional. A beca, a toga, a respiração ofegante, a mão comprimindo o diploma, as lágrimas, o orgulho, o beijo. O ventre intumescido, a rotura do fio umbilical, as contrações, o choro da vida, o branco bordado em vermelho, a descendência, a continuidade, o beijo.

Pois bem, deixemos a história falar um pouco mais sobre a magia do beijo.

Segundo fontes oficiais, remonta a 2500 a.C., configurado nas paredes de Khajuraho, na Índia. Na Suméria, antiga Mesopotâmia, enviavam-se beijos aos deuses. Era habitual o beijo entre os gregos e romanos no retorno dos combates.

Os gregos adoravam beijar, mas foram os romanos que propalaram a prática. Os imperadores permitiam que os nobres beijassem seus lábios, e os menos importantes, as mãos. Os súditos limitavam-se apenas aos pés. Na Roma antiga, os casais ficavam noivos beijando-se publicamente. Além disso, embora a maioria das pessoas julgue que apenas cartas de amor são “seladas com um beijo”, esses foram utilizados para selar contratos jurídicos e comerciais. Os antigos romanos também costumavam beijar como parte de suas campanhas políticas. No entanto, vários escândalos de “beijos por votos” na Inglaterra do século XVIII levaram, teoricamente, os candidatos a beijar somente jovens e idosos.

Havia três tipos de beijos: o basium, nos lábios, entre conhecidos; o osculum, na bochecha, entre amigos; e o suavium ou savolium, beijo profundo, dos amantes.

Na Escócia o padre beijava os lábios da noiva ao final da cerimônia. Na Rússia, uma das mais altas formas de reconhecimento oficial era o beijo do czar. No século XV, os nobres franceses podiam beijar qualquer mulher. Na Itália, entretanto, se um homem beijasse uma donzela em público, era obrigado a casar imediatamente.

Lembremos que no latim, beijo significa toque dos lábios; na cultura ocidental, gesto de afeição; entre amigos, é utilizado como cumprimento ou despedida; entre amantes, prova de paixão. Mas é também sinal de reverência, ao se beijar o anel do Papa ou de membros da alta hierarquia da Igreja, assim como a “bandeira do Divino”. D.João VI introduziu a cerimônia do beija-mão: em determinados dias o acesso ao Paço Imperial era liberado a todos que desejassem apresentar reivindicações. Em sinal de respeito, todos lhe beijavam a mão direita antes de fazer o pedido.

Na doçaria faz-se presente no “beijo de alemão”, “beijo de mulata”, “beijo africano”. Na Zoologia e Botânica, “beijo-de-moça”. “beijo-de-frade” e “beijo-turco”. O “beijo-de-aranha” é um desconforto infeccioso (Herpes).

O beijo raramente apareceu na arte ou na literatura por centenas de anos. O poema épico indiano “Mahabharata” descreve o beijo nos lábios como um sinal de afeto. O texto religioso indiano “Vatsyayana Kamasutram“, ou o “Kama Sutra“, também descreve uma variedade de beijos. Obras da literatura como “Romeu e Julieta” descreveram beijos como “perigosos” ou “mortais” quando compartilhado com as pessoas inadequadas.

Um dos beijos mais comentados do mundo ocidental foi o beijo de Judas Iscariotes usado para trair Jesus antes da crucificação.

A foto mais icônica de celebração pós-guerrra mostra o veterano de 80, Glenn McDuffie, beijando a enfermeira Edith Schain, o momento foi imortalizado pelo fotógrafo Alfred Eisenstaedt.

Para beijar, o ser humano movimenta 29 músculos. Trocamos, em média, 24 mil beijos (dos maternais aos apaixonados e até roubados). As batidas do coração sobem, em média, de 70 a 150 vezes por minuto.

Conceituados escritores imortalizaram o beijo em versos e prosa. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, o protagonista Bentinho começa seu romance com Capitu com um beijo enquanto ele penteava os cabelos da enigmática donzela. Olavo Bilac vaticinou em “Um beijo” – Foste o beijo melhor da minha vida – beijo extremo, meu prêmio e meu castigo. No conto “Príncipe encantado”, a princesa dá um beijo ao sapo, transformando-se esse em um príncipe. Florbela Espanca, em Horas Rubras verseja: “Horas Rubras Horas profundas, lentas e caladas/ Feitas de beijos rubros e ardentes,/ De noites de volúpia, noites quentes/ Onde há risos de virgens desmaiadas.../ Oiço olaias em flor às gargalhadas.../ Tombam astros em fogo, astros dementes,/ E do luar os beijos languescentes/ São pedaços de prata p'las estradas.../ Os meus lábios são brancos como lagos.../ Os meus braços são leves como afagos,/ Vestiu-os o luar de sedas puras.../ Sou chama e neve e branca e mist'riosa.../ E sou, talvez, na noite voluptuosa, / Ó meu Poeta, o beijo que procuras!”

O escultor francês Auguste Rodin, de tantos delírios amorosos que viveu com Camille Claudel, eternizou o beijo em uma de suas mais famosas obras: “O Beijo”.

Guiddarello Guidarelli, bravo soldado italiano do século XVI, morreu em combate e ganhou uma estátua para colocar sobre sua tumba. O que Guidarelli nunca poderia imaginar é que ela viraria alvo de mulheres desesperadas por um príncipe encantado. A partir do século XIX, começou a correr o boato de que, se você beijasse os lábios da estátua do soldado, se casaria naquele mesmo ano. Estima-se que cinco milhões de mulheres procuraram o ósculo casamenteiro.

A vulgaridade castrou a nobreza do beijo de respeito dado à testa. A frigidez rotulou o beijo de comadre. Os filhos envergonham-se de beijar o pai. A mediocridade tributou o “selinho”.

Felizmente, ao voltar ao berço natal, embriagado em saudade, o viandante toca o solo com os lábios.

O beijo não deve e não pode ser apenas a manifestação mecânica dos lábios. O beijo é sim a demonstração natural de amor, de afeição, de carinho, de emoções que nos intimidam e nos deixam com a sensação de voarmos sem sair do chão.

Não é sem razão que Amy Banglin afirmou: “o beijo é a menor distância entre dois apaixonados”. Jéssica sentenciou: “quando uma brisa leve tocar teu rosto não te assustes: é apenas a minha saudade que te beija em silêncio”.

Aos que creem em sentimentos, reconhecendo o significado afetivo de um afago, a lembrança de Don Juan Bernardi: “O primeiro beijo, seja isso bem claro, não o dão os lábios, mas os olhos.”

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - maio 2012