MESSIAS DE SI MESMO
                            ( á maneira de Fernando Pessoa)
 
“ Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas”

                           Álvaro de Campos- Heterônimo de Fernando Pessoa
 
                                      ***
Sou publicano e pecador como Mateus
E também fui cobrador de impostos.
Inocentes e culpados me odiavam e me temiam
Embora sempre me convidassem para os banquetes
Na esperança de que, compartilhando do butim,
Eu pudesse perdoar os seus pecados tributários.
Mas como eu acho que quem tem o direito de perdoar
É só aquele que sofreu a ofensa,
Eu pegava a minha parte na comida e na bebida,
Como recompensa do sarcasmo que eu tinha de suportar.
E quando saia deixava em cima da mesa um Auto de Infração.
 
Isso é ser publicano e pecador como Mateus,
E não tendo habilidade para escrever um Evangelho
Registro meus pensamentos desencontrados
E faço versos esculpidos a golpes de formão e martelo,
Para compensar a falta de um espírito comprometido.
Mas também, comprometer-se com o que?
Se todo compromisso é só uma disposição de momento
Que logo nos abandona quando não vem o resultado.
Deus, com certeza, sabe porque o mundo existe,
Pois foi ele que assumiu o compromisso de construí-lo,
Mas se Ele sabia o que estava fazendo, não tenho certeza,
Pois assim que começaram as dificuldades administrativas,
Ele logo o abandonou nas mãos do Outro.
 
Sempre tive vontade de seguir um Messias
Mas nunca me habilitei a isso,
Por que nunca achei nenhum que merecesse a minha sombra.
Ao contrário, sempre caminhei com o sol na minha frente,
Porque queria ver a minha sombra me seguindo.
Sei que tudo isso é realmente muito arrogante,
Sei que esta é uma confissão terrivelmente constrangedora,
Sei que tudo se afigura como estultice imperdoável,
Mas todas as minhas razões me perguntam:
─ Por que ser apenas um discípulo,
Se eu mesmo posso ser o Messias?
 
Sim. Já tive vontade de consertar o mundo;
Esse mundo imenso que eu observo da minha janela.
Esse mundo que eu posso ver com meus olhos gestaltianos
E sentir com meu coração de cinestesias não catalogadas.
Este mundo cujos sons eu escuto com meus ouvidos analógicos
Mas só posso compreender com minhas crenças estereotipadas.
Pensei que poderia fazê-lo cobrando daqueles que tem e não pagam,
E ainda pedem financiamentos para pagar os rombos
Que eles mesmos fizeram em seus bancos
Sumindo como o dinheiro dos depositantes.
Ou para tocar as fábricas que nunca saem do papel
Mas não obstante pedem falência dois anos depois
Levando á falência também os acionistas,
Mas quem funda bancos e constrói fábricas,
São os mesmos que fazem e cuidam das leis,
E fizeram uma para a raposa e outra para as galinhas.
 
Ser publicano e pecador, sentado á porta da alfândega,
É oficio fácil. Quem passa a pé é logo alcançado.
Seus rostos podem ser fotografados,
Seus endereços são facilmente encontráveis
Suas contas simplesmente rastreadas,
Seus nomes podem ser todos recenseados.
Seus passos seguidos com milimétrica precisão.
Mas os porches, as ferraris e as mercedes
São rápidas demais para serem alcançadas
Por idealistas montados a cavalo.
Assim, eles só podem ser seguidos na distância,
Pelos olhos da inveja e o ódio de não poder ser como eles.
Ódio é tudo que nos sobra e é bastante. De odiar também se vive.
 
Então resolvi me contentar em ser publicano e pecador.
Não seguirei nenhum Messias,
Nem me tornarei discípulo de ninguém.
Na formação do cosmo Deus pôs um princípio que diz:
“Quanto mais certeza quiseres obter do universo,
Mais incerto ele aparecerá aos vossos olhos.”
Para sabermos o que virá antes ou depois,
Seria primeiro ter certeza se houve um antes e haverá um depois.
Mas como essa certeza não existe essa questão não tem sentido.
Assim, seja o que for que eu faça, ou pense, ou deseje,
O universo continuará alheio ás minhas esperanças e meus temores.
 
Quando todo o combustível do universo for queimado
Ele desabará sobre si mesmo
Como uma fogueira de São João.
Só que da fogueira sempre restarão as cinzas,
Para que, milhares de anos depois, algum historiador
Possa dizer, pelas cinzas desenterradas,
Que ali, um dia, houve alguém fazendo festa.
Mas quando o universo virar cinzas,
Todos os historiadores também serão apenas um pó radioativo.
E não haverá ninguém para escrever coisas tais como História
E fazer especulações como esta que estou fazendo.
Tudo retornará ao silêncio da Anterioridade que memória nenhuma registrou.
E do silêncio do buraco negro nem a luz consegue escapar.
 
Antes do Big- Bang talvez houvesse alguma coisa.
E depois do Big-Crunch talvez brote outra Singularidade.
Talvez o universo não seja diferente daquela árvore arvore seca
Que eu posso ver da minha janela. Eu sempre achei que estava morta,
Mas um dia dela explodiu um pequenino e frágil broto.
Talvez eu não deva ficar me preocupando em descobrir como isso acontece
Mas apenas ajudar, com minhas atitudes,
Para aquele broto se torne uma arvore bonita e forte.
Dito isso, percebo que há um mundo infinitamente maior
Do que este em que a nave das minhas especulações viaja.
Um mundo que existe dentro de mim mesmo.
Este é meu e eu posso consertar.
Este eu posso provar que existe,
Por que sou eu com todos os meus sentidos,
Sou eu com todas as minhas escolhas, certas ou erradas,
Os meus resultados, bons ou ruins,
Mas apenas e tão somente resultados.
Dito isso, continuo publicano e pecador,
Pois no fim das contas, cheguei á inevitável conclusão,
Que todo homem só pode ser o Messias de si mesmo.