Selva

SAÍ DA SELVA há milhares de anos, por uma manhã. Fartara-me, enfim, de tanto andar atrás de raízes, cansara-me, afinal, de tanto pôr-do-sol, de tanta mordida de cobras sem veneno, de tanta árvore enredada em tudo o que é vida. Fartara-me. Tomei consciência de que não era girafa e de que o elefante era grande demais para os meus devaneios, e saí, correndo, do matagal.

Durante anos ou séculos eu vim por aí, contente, ufana do meu novo rosto, liso e rosado, do meu novo corpo, erecto e esbelto, dos meus pés espalmados num solo tranquilo, e cresci para o céu, achando o azul a morada certa para a minha grandeza. Esqueci-me do corpo peludo e horrendo dos tempos da selva; esqueci-me das raízes, minha fome antiga, e dos corpos gigantes, meus velhos amigos. Perfurei o azul e achei-me diáfana, companheira de nuvens, dialogante de sóis.

Quis transformar o meu nome humano (porquê? porque não?) e chamei-me deus. O corpo não basta, já não é peludo e as mãos agarram minúsculos seres, o cérebro agora está cheio de curvas e os pobres coitados da selva africana ainda são negros e tocam tambor. Então eu é que sou, eu é que valho, eu é que tenho a chave de tudo o que é tudo, de tudo o que é nada, o que é ser e não ser. E gostei, e amei esse mundo perfeito, cheio de tudo, tão cheio, tão cheio, que acabei por esquecer o meu cérebro humano, torcido em delírio no meio do crânio. Tornei-me uma máquina.

Agora crepito, saltito e vomito o meu nojo insano, minha raiva impotente, entre luz de néon e betão comprimido, entre uivos ferozes de motores, chaminés, trombetas fatais, nuvens de pó e gritos perdidos em campos polutos... agora crepito, vomito e saltito, os meus pés só se erguem um palmo do solo uma hora por dia, um minuto por hora, cada vez mais de rastos, a cabeça no pó, na lama que a chuva esculpiu em miséria.

E, de vez em quando, um minuto num século, eu penso na selva, na raiz e no corno. Esqueço-me logo e prossigo de rastos a caminhada infame, cumprindo o dever, esperando a medalha.

Daqui por um século vou lembrar-me do negro que toca tambor na selva africana. Quererei partir. Mas o cimento e o asfalto não levam à selva e as colunas erectas não comem raízes. A memória torcida já terá esquecido o caminho do verde; a memória fanada já terá negado o elefante monstro, devaneio impossível. Terei que resignar-me ao ornamento da lama, do rastejar na sarjeta a que chamam dever. E acabarei recebendo a medalha de lata, e serei ungida com a coroa ridícula de palhaço de feira.

A isto chamam os homens, felicidade, e esta é ainda uma história verdadeira.

Regina Sardoeira
Enviado por Regina Sardoeira em 08/09/2005
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