O veneno da alma
 
 
Cai
a pluma
rítmico suspense do sinistro
nas espumas primordiais
de onde há pouco sobressaltara seu delírio a um cimo fenescido
pela neutralidade idêntica do abismo
(Stéphane Mallarmé in “O Acaso”
)
 
Crepuscular. Ardente. Enveredando por caminhos tortuosos do não-tempo, eis o acaso. Um filamento vermelho que escorre da narina esquerda por falta de umidade ou excesso de pó, tudo dá na mesma. O acaso espreita na esquina do crepúsculo, mas não é um crepúsculo de ídolos, não, este é o crepúsculo dos condenados ao limbo. Veja só, todas essas almas sem olhos, girando em círculos. Quais são os passos para desvencilhar do acaso?

Sigo escrevendo de olhos fechados, pois, assim vejo melhor. Tudo o que me inquieta, dilacera não passa de reflexos em espelhos despedaçados. Eles forjaram tais espelhos, onde? Não sei em que universo, mas não corresponde ao meu local de origem. Veja bem, há moscas agora sobrevoando minha sopa, rechonchudas e rebeldes como foram nossos sonhos outrora. Não trago na alma o acalanto dos que venceram. Escovo os dentes com todas frases feitas dos grandes homens, e reitero minha total falta de capacidade em seguir adiante sozinho, por mais que a solidão esteja perto, não a quero. Rechaço-a como a uma inimiga, é uma constante dispersão dos sentidos e assim fizeram Deus, para que pudéssemos deixar de ser tão sós. Uma salvação iria bem agora que minha sopa esfriou e meu estômago range em agonia. Já não como porque tudo o que me resta são as palavras de homens mortos no vazio.

Não tenho nenhuma mão amiga além da garra do acaso em dias ocres como estes em que rodo, rodo atrás do meu rabo. Fatigado de água ardente, os entorpecentes que não entorpecem porque nunca fizeram diferença. Fecho mais os olhos para dentro de mim mesmo, o que encontro?

Lama. Lodo. Lamúria.

Você pode ser um santo ou um demônio depende apenas da forma que enxerga o que traz na cabeça, chifres ou aureolas, o que dita a diferença entre o que suportamos vitoriosamente? Suportar não é edificante, veja bem, há uma glândula que secreta veneno dentro de nós, algo feito voluntariamente. Estou secretando esse veneno na alma há tanto tempo que a dormência faz parte dos meus dias. A serpente que come o rabo, infinitamente, o mesmo rabo e a mesma serpente.

Sei que há um quê de louco em meus trejeitos e trago agora também um olhar moribundo, detestável e carrancudo de quem não sabe nada e assim segue inerte, indefeso e vazio. Sei que há um quê de absurdo em todas palavras que escrevo, mas é o acaso, e apenas ele, que ainda faz-me crer que em algum momento o veneno irá parar de escorrer pelas veias em abismos da alma lodacenta. 

O inesperado acontece quando não quer acontecer. 
No lugar de veneno
haverá sangue,
finalmente.
Quereria reencontrar a humanidade perdida,
ou a efíge do acaso. 
Larissa Prado
Enviado por Larissa Prado em 07/02/2017
Código do texto: T5905753
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