Dia de marcação do gado
Dia de Marcação
A lua vai subindo
No céu chumbo avermelhado
Quero-queros e paturis
Revoam rasantes sobre o banhado
Bandos de cavalos, bagual, éguas e crias
Sorvem o verde lodo do alagado
E o vento marolando as águas
Traz de bem distante
O cheiro característico, marcante,
De jacarés, pacus, curimbatás e pintados.
O gado franqueiro, caracu, nelore e girado
No curral coberto de bacuri e carandá fincado
Berra ao som do laço, da palomita
Ouve-se o barulho de um boi pialado.
Murmúrio de cascos e guampos
Esturro de touro alongado
Forçando a porteira de varas
Com maneador de couro amarrada
A conter o rebanho mutilcor
De brasinos, araçás, macaus, barrosos,
Salinos, galantes, jaguanés, chitados,
Pirocos, enchurriados , oscos e melados.
De chifres abertos, cravadores afiados
Cornijos, bananas, torqueses e cumbucas,
Aguardam o momento de serem marcados.
O laço assovia no ar e cai
Certeiro sobre rês escolhida
Que parece no ar flutuar
Pela corda de couro cingida
E ao tocar o chão do mangueiro
É por hábeis mãos calejadas contida
Imobilizada, segura, rendida
Tem o couro, a pele, o pêlo invadida
Por uma marca incandescente,
A queimar-lhe as carnes, fazendo ferida
E que levará tal marca para todo o sempre
De sua vacum vida
Tirando-a do estado de selvagem liberdade
Para lhe atestar a condição de mera propriedade.
No galpão já se vêem cavalos suados
Capas de chuva, alforges e cantis
Guampas de tereré, picuá de erva e fumo
Jazem no galpão amontoados
Bacheiros e pelegos já estão pendurados
Na cerca de aroeira e vinhático lascado
E na espora de sangue rubro manchado
O derradeiro pulo de um xucro domado
O arreador mudo de argolas cinzentas
E couro cru trançado
Descansa sobre o tambo lampinado
O cravador de chifre de veado mateiro
A faixa guarani de algodão cardado
O turú de chamar o gado
Lembrança constante de dias viajados
Galope de potros, empino de xucros
Boleios em corixos, burros empacados
E no fogo crepitante
Nas brasas vermelhas do angico
Recordação de brancos, índios e mestiços.
A velha chaleira encarvoada
A água quente a derramar
O jujo mesclado na água
Folhas, raízes, cascas, sementes
O bombilho de prata, a erva na cuia
O mate para cevar
Distante passado das gentes
Vem dizer aos índios campeiros
Aos peões boiadeiros
Mescla bem mesclada
De Nações e tribos quase dizimadas
Guarani, kaiowá, Kadiwéu , kinikinao,
Guató, xamacôco, guayaqui e terena
Nação de homens cor de cobre,
Hoje descaracterizadas
Índios longe das aldeias, sofridos,
Em infindável peleia pela retomada da terra
O viver constante em estado de guerra
Das gerações criadas nos corredores
Sem direito de chorar suas dores
Nos tekohás de seus ancestrais, nhande ramói
E ver a terras de seus pais transformada
Em canavial , lavoura de soja e pasto de boi
Injustiça que lhes revolta, lhes dói
Mestiços marginalizados, guerreiros desarmados,
Reencontram sua pujança, vigor e libertação
Nos lombos de um cavalo,
As crinas seguros, agarrados
Galopando atrás de bravio gado
Num dia de marcação.
Marcus Antonio Ruiz Karaí Mbaretê