SOB OS DESTROÇOS O RESCALDO DA FÉ

O tempo passava por ali despercebido, como sempre passa, alheio às mudanças, acostumado que está a tirar tudo do lugar, sem jamais pedir licença.

Apressado pelas horas idas nos relógios atrasados das mudas catedrais, sequer notara que ali as pessoas já não eram mais as mesmas.

Haviam perdido o mais importante, o que ela não sabia identificar de imediato.

No burburinho da megalópole cosmopolita que não para nunca, sequer para respirar os extintos ares de direito, naquele dia ela petrificou seu olhar inquieto só para observar.

Pelo cenário destruído, procurou por algumas nuanças do que ainda lhe parecia familiar.

Enxergava uma obra algo urbana, algo selvagem, onde já não distinguia “bichos- bichos” do bicho Humano e se perdeu por instantes no habitat comum daquela arte eclética construída pelos tantos abandonados destinos do Homem .

Se fosse pela decomposição do todo arriscaria descrever a tela que via como uma contemporânea arte cubista da insanidade .

Ali, toda a diversidade convivia num imenso amontoado de mesmo espaço, desde a perdida dignidade humana até o rescaldo de todos os símbolos do que um dia fora História emoldurada com o glamour científico e urbanístico dos grandes mestres arquitetos, a imitar as megalópoles do sonhado “primeiro mundo’.

“Que escala de mundo seria aquele?”-sei que se perguntou.

Senti que segurou o ímpeto de contração dos músculos abdominais, nauseada que ficara com as notas ácidas misturadas às frações das múltiplas drogas combinadas ao odor fétido de uréia velha, fermentada.

Desejou algo que a socorresse dali...algum sinal de vida latente.

Quiçá uma brisa lhe tocasse a face de dantes, uma leve garoa refrescante a umidecer sua garganta seca, a limpar o fuligem acumulado nas almas perambulantes, a delirar ouvir o canto fanhoso dum pássaro perdido e poluído de vida, tanto quanto assim parecia o sofrimento intangível das pessoas jogadas ao léu das calçadas.

As cores fortes das edificações degradadas vez ou outra contrastavam com o piche de desenho obscuro , mensagens advindas de todos os ódios sociais plantados pelas gerações peregrinas que seguem pelas perdições programadas sem serem vistas.

Dia antes alguém, já do lado de fora, pedia socorro na edificação que incendiava.

Não houve tempo.

Nas degradações sempre é tarde demais, ainda que estejamos do lado de fora delas.

Viu que a construção tombada veio abaixo em chamas, qual a lava dum vulcão social erupcionado de raiva e aflição, cansado de fervilhar o engano das vidas suspensas, pseudo sustentadas nos esboços dos arranhacéus erguidos sem alicerces humanísticos.

Pensou consigo mesma: ” como algo tombado e ruído poderia tombar e ruir mais ainda?”

Fez um rescaldo do pensamento com os olhos e com a alma.

Ali existia gente, pedras e cinzas. A vida carbonizada.

"Sequer as fênix ressurgiriam dali", concluiu.

Como num inventário do todo, ao lado, se surpreendeu com duas luminárias européias, confeccionadas com ferro polido, hercúleas e impenetráveis, que tentavam soerguer o que sobrara da sua antiga cidade, a que já não mais reconhecia com sua.

Intactas, pareciam cumprir a missão milagrosa de iluminar o breu de todos os escuros impenetráveis.

Ali, mais uma vez, -como tantas vezes! alguma coisa acontecera - no seu coração...desde que sua cidada fora cognominada pela bela poesia da famosa esquina de outrora.

Ao fundo, a completar a tela dolorosa, percebeu a torre erecta e intacta da antiga igrejinha Anglicana do Paissandú , a que, atônita, ensinava que nenhuma dor, tanto quanto nenhum milagre, jamais chegam e sobrevivem sozinhos.

E mesmo no cenário mais ininteligível, onde o sofrimento faz morada sob os escombros da insensatez humana, ainda é possível se rescaldar a

Fé soerguida e inabalável.

Então , em meio ao campo minado de esperança, a lhe que parecia irremediavelmente perdida, ela entendeu o recado ali desenhado.

Ajoelhou-se, rescaldou-se dos seus próprios escombros e rogou por piedade ao todo esquecido.

Nota da autora: em profundos sentimento e lamento pelo tudo acontecido.