TRISTEZA:A PALAVRA CONSENTE?

O menino triste: a melancolia que perpassava artérias e veias de todo o corpo.

Passaram muitos anos tantos que já nem lembra. Contavam os mais velhos que nasceu pobre. Fruto do amor de dois adolescentes, quando nasceu, o pai tinha dezoito anos feitos um mês antes; a mãe iria fazê-los um mês depois. Contavam os mais velhos que, no dia do casamento, foram buscar dois molhos de lenha para acender o fogo.

E assim começou. Lembranças muito vagas, tempos difíceis, o interior profundo sem nada, apenas amor e carinho, sendo que o pão que nunca faltou. Da pequena infância apenas vaguíssimas recordações. Lembra-se da sacola ao ombro, a caminho da escola. Da ardósia, do bloco de anotações, caderno de páginas cheias de orelhas, do professor. Recorda-se do frio: o do corpo e o da alma.

Dizem que tinha um jeito particular de aprender. Aos seis anos conseguia ler notícias nos jornais, lia tudo o que pegava, em voz alta para os mais velhos e que não sabiam ler. Lia, mas não sabia precisamente o que aquelas palavras queriam dizer. Assim foram se passando os anos. Duros anos. Quatro na escola e por aí ficou. Devorava a história que os livros contavam, ficava fascinado com os feitos dos portugueses pelo mundo.

Cedo, muito cedinho, sentiu os rigores da luta pela vida. Nunca desistiu de ler e de tentar entender. Lia e relia tudo que lhe caía na mão. Jornais, livros velhos, panfletos. No entanto apenas ria, ou antes, sorria; porque a tristeza sempre o acompanhava bem escondida na alma torturada. Nunca foi feliz. Existia apenas.

Passavam-se os anos, o menino foi crescendo, trabalhou, sofreu. Ao frio, ao vento, calcorreou caminhos vezes sem conta, e quantas exposto à chuva, ao vento, pela noite escura. Continuava a ler, devorava livros à luz das velas, mais tarde à luz do petróleo. A luz elétrica só a viu muitos, muitos anos mais tarde.

Sonhou com as aventuras da história, na instrução primária. Nunca desistiu. Passavam os anos muito lentamente. Com um letárgico vagar, bem devagarinho, começou a germinar dentro de sua alma sombria a aventura de outros mundos, outras terras, outras gentes.

Como que por um destino há muito traçado, foi fortalecendo a vontade de sair às ruas e de se expor aos tropeços nas ruas, urzes e sarjetas, de sol a sol. Miúdo, jogou-se ao mundo, com alguma lucidez quase juvenil, mas inexperiente para as aventuras da vida. Predestinado, muitas das aventuras lidas e relidas se iriam tornar incríveis, inesperadas realidades cotidianas.

De seus pais se despediu esse menino, que foi crescendo, mas continuando sempre triste. A mãe ele nunca mais a viu. Mais se acentuava sua tristeza. A razão da sua profunda melancolia, soube-a no momento em que viu no registro de seu nascimento: por ser pobre, ficara isento de emolumentos. Este menino pobre trabalhou, sofreu esforços e cansaços, não somente passou pela vida; viveu o que o momento lhe oferecia. E tudo graças à sua condição de haver nascido pobre, um excluído social, sem eira nem beira.

E eu diria: é crime ser pobre?

Por não haver nascido em berço de ouro teve o que mais necessitava: o amor da família em rarefeitas situações, todavia o sentia fundo nas lágrimas da mãe, no devotado carinho do pai. Deve ao bom Deus o destino que este concedeu sem hesitação e com fortaleza.

O Pastor de Tudo deu-Lhe a felicidade de ser pobre, a par de ser rico de quinhões de amorosas bênçãos. Aquelas mesmas de todos os dias, desde que aprendera a falar...

Afinal, o que é a riqueza, tal como a palavra assim a consente?

Quo Vadis
Enviado por Quo Vadis em 23/05/2018
Reeditado em 23/05/2018
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