LA VIE EN ROSE

Naquele dia, assim que entrou, senti que já não era mais ela.

Não me disse absolutamente nada com palavras, mas, num único movimento do seu olhar, pude ouvir a sua dissimulação inconsciente do tudo que lhe ocorria.

Pela vida, há ocorrências que diagnosticamos em frações de segundos sem precisar perguntar muita coisa.

O cenário falava sozinho.

Amiga querida de quase trinta anos, eu nunca soube que contava ela vinte e dois anos a mais que eu, posto que sua beleza, elegância e delicadeza pareciam rosas eternamentes frescas a ludibriar seus anos, sem que fosse a intenção dela.

Sempre fora professora na arte de ensinar a "finesse" natural das gentes, coisa de alma, aquela que muitos jamais aprenderiam, ainda que tivessem a sorte de tê-la por perto.

Sabia fazer todos os melhores arranjos da vida, em quaisquer circunstâncias, mesmo nas mais inóspitas!

Pelas tantas "vias da vida", com ela aprendi que todos já chegamos meio prontos e que algumas convivências ocorrem para que possamos nos lapidar pelo mistério do se ser:um efêmero corpo, embora de "quântica energia" eternizada.

Tal deva ser a dádiva das verdadeiras amizades.

Entrou acompanhada do marido, a passos curtos e lentificados, olhar desfocado, postura desalinhada, vestimenta meio ao acaso e já não trazia no olhar aquela vivacidade das rosas recém florescidas.

O cumprimento foi frio como se me visse pela primeira vez.

Chameia-a pelo nome e ela pareceu-me já não se lembrar de si mesma.

Com muito esforço consegui uma comunicação:"sim, estou bem, apenas um pouco resfriada".

" resfriada" era a adjetivação precisa para aquela cena da vida.

Em poucos segundos ainda me foi possivel reviver sua atividade profissional, seu carinho em orientar as pessoas desfavorecidas pelas vias de fato, da escolha delicada da faiança para a mesa do nosso frequente chá da tarde entre amigas, da sua música preferida, do aconchego humano e iluminado que me cedeu em momentos difíceis, bem como dum episódio de autógrafos do seu livro de anotações das peripécias que nortearam o desenvolvimento cognitivo dos seus netos.

Demos boas risadas naquele livro...

Sempre nos contou muitas histórias que por ela já pareciam esquecidas, quiçá arquivadas num cofre biológico, onde ninguém mais as acessa.

Conto que certa vez me procurou aflita para lhe resolver um grande "problema":

"você me ajudaria a escolher as músicas para a serenata de aniversário do meu marido?"

Então, por saber que ela gostava de Édith Piaf e por ser uma eterna apaixonada pelo homem que escolheu para seguir todas as vias da vida, lhe sugeri a inclusão do contexto da clássica "la vie em rose".

Antes que dali fosse embora, apenas com uma orientação para sintomáticos, visto que ninguém retrocede as mudanças do que parte pelas vias compulsórias, eu lhe murmurei a tal melodia sugerida.

Senti que tinha acertado no remédio certo, algo milagroso...

Instantaneamente ela me abriu um sorriso mágico como se todos os jardins do mundo hovessem reflorescido em vida cor-de rosa.

Aconchegou-se no marido e se setenciou: "da próxima vez já não lembrarei nem do meu nome"; disse num milagre de lucidez, num certo tom debochado, como por vezes costumava fazer.

Senti que ali acabava de colher uma de suas rosas...

Então, de súbito aprendi que a gente nunca parte da gente.

É impossível se deixar de ser essência de flor rebrotada.

Há um lugar inacessível aos olhos do outro no qual, ainda que em fração de segundos, podemos nos encontrar conosco, na nossa genuína parte semente, a nos replantar para recolher de nós todas as quiescentes rosas florescidas pelas nossas vidas.

Elas sempre estarão ali, prontas e viçosas, para emanarem o mesmo perfume que um dia nos inebriou pelos mais belos canteiros do nosso frondoso jardim.

Eis a via de memória cor-de rosa, a que todos poetizamos em vida...para sempre.

Nota da autora: em terna homenagem.