PEDAÇOS DE MIM - A outra ação

Raspei as sobrancelhas. Olhando-me no espelho, elas me incomodavam... Não faziam parte do meu rosto: largas, compridas, estúpidas! Eu as odiava, não as queria em mim. Foi com fúria, sem pensar muito, peguei o raspador e fui passando assim, sabe, de um lado para o outro, depois de cima para baixo e elas foram deixando de existir. Malditas, malditas! Raspei, não sinto falta nem remorso...Eu não as queria nem elas a mim, eu sentia, era apenas uma coisa que causava incômodo. Vinham até aqui, tomavam muito espaço e lugar e nada representavam além do meu péssimo descontentamento. Era ruim a sensação de ver a sua imagem refletida e ela não refletir nada em você a não ser desgosto...Um desgosto largo, expansivo, nostálgico...Raspei até as marcas e as sombras. Tudo apagado. Eu já nem me lembro do meu rosto de antes, sério, parece que raspei tudo, até a imagem de antes que me oprimia. Um rosto que não é o meu rosto que está por dentro de mim... Engraçado, não é mesmo, cômico, divertido aos olhos os dedos e dos olhares dos outros que não compreendem o que se passa consigo, mas, mas a propósito de escrever em sua testa o que é e como se deve ser, agora fiquei a me chamar da coisa estranha de sobrancelhas raspadas. Riem de mim. Sabotam-me com insultos e a minha vontade é de masturbação, gozar no coletivo, exprimir o corpo e deixá-lo todo desejo, sem repressão, sem opressão, esbravejante como algo que estava preso, mas que se soltou! Eu me soltei, libertei de mim o que já não existia representatividade, não é bom o acúmulo por nada, sem uma razão...Depois eu sentir necessidade de pegar o tubo de creme dental e cobrir todo o meu rosto de desgosto. Fiz! Ardeu, mas a vida ingrata é mais quente, nela se derrete sem se sentir... O creme espalhado pelo meu rosto despertou meu riso e eu escancarei a minha boca até a salivação escorrer pelos cantos. O riso correu frouxo e eu me perdi na cena. Deixei que ele extravasasse tudo que eu estava sentindo, mesmo sem saber explicar. O rosto de sobrancelhas raspadas, coberto de creme dental dizia mais de mim do que eu poderia dizer. De repente um fio de pânico foi se instalando bem aqui desse lado, veja...Eu me perdi velejando em um horizonte que não dava para os meus pés sentirem o frio do piso do banheiro. Que coisa, no espelho, meu rosto não tinha o reflexo de antes, agora era um outro eu ali e eu insistindo pela compreensão que se evapora como a água da pia que sumia. Achei por bem fechar os olhos por um minuto. Até quis ficar sem respirar, prender o ar, mas o medo do soluço me deixou sem ação...Quem sou? Que rosto tenho? Quem sou? Que rosto tenho ... Sou ... Tenho... Quem... O meu rosto se compadeceu de mim porque ele precisa representar a mim, ali, depois de ali e por muito tempo depois de ali... Peguei um batom e contornei os meus lábios de vermelho. Passei mais de uma vez, passei fortemente e a minha boca me fez um prazer de volúpia. Eu beijei a mim pela imagem do espelho. Sorvi os meus lábios com voracidade até que cansei de ficar apenas ali... O meu rosto nunca mais foi o mesmo nem teve o mesmo formato. Eu o moldei a mim para que tivesse a minha cara. Agora, nessa hora, ele sou eu e nele eu me contento ser esse reflexo que vezes agrada, outras é apenas uma possibilidade que implica mudanças....

Marcus Vinicius