Ensaio sobre nada

Baco resmunga alguma harmonia em sua viola, e os acordes ressoam como um lúgubre lamento. Sinto-me repentinamente triste. Através de um longo suspiro, observo pela janela de meu quarto a chuva que escorre as espáduas desta noite de outono. A música é apenas mais um fugaz inquilino por estas horas; ao interromper-se a harmonia, resta ao canto, em terna solitude, a velha viola silenciada, e a chuva que cessa cede espaço aos ruídos da casa...

Não tenho escrito nada nos últimos meses, e mesmo o manuscrito de algumas semanas atrás não passa de uma medíocre reação ao tédio. Minha rotina tem sido uma mórbida busca por inspiração artística; vaguei algumas noites pelos bares e pelas esquinas; vi o cortejo sorrateiro da lua rumo à alvorada, e anedotas análogas interpretadas por jovens encharcados de vinho.

Baco é meu amigo, talvez o único que eu tenha. Conversamos quase a todo o momento, geralmente debruçados na sacada de seu apartamento no Bom Fim. E ao debruçarmo-nos à sacada, nos debruçamos sobre todas as coisas, e observamos com olhos jocosos as ridicularias demasiado humanas. Ouvimos ansiosos as nossas profusas sentenças, sem escrúpulos com o jeito áspero com que lidamos com determinados assuntos. Talvez por ser tão louco quanto eu, Baco consiga comunicar-se comigo. Talvez, ambos estejamos presos a uma prosa entre loucos...

“Escrever”, não era algo do qual eu teria me encarregado. Contudo, em meio ao mar de merda desta sociedade vil e hipócrita, escrever pareceu-me algo sincero. Conduzi-me ao cadafalso e fiz das palavras o meu carrasco.

Alguns tolos tornam-se idiotas sob a influência de “semideuses”. Outros tolos tornam-se ignorantes por conta própria. Mas acima de tudo, todos os tolos são interpretes de si mesmos no palco das pertinências, e assim tem seguimento a dissimulação cívica, a peça da boa conduta humana. A suposta paz; a suposta tendência do ser humano para o bem; os supostos amores perfeitos dos jovens que ainda não foram arrojados pela vida ao denso mar de realidade destes tempos, que longe de serem auspiciosos, devastam o coração daqueles que vivem em fuga da inexorável tristeza humana.

Ver os jovens envelhecendo; sentir-se espichar ao fazer anos; o primeiro porre; o primeiro beijo; viver a vida, lidar com o tempo. Sorvo a amargura do que sou em secos goles de vinho. Em dias de chuva, vejo-me uma figura dominical empijamada. Ronco o mate e lavo a erva. “Com que hei de ocupar-me?” Grita-me adentro o velho estandarte dos homens... Levanto-me e circulo pela casa de meias. E pensar que quase me deixei seduzir pela ideia de que poderia ser mais do que um homem... Não. Sou tão vil quanto pode ser qualquer ser humano, e não me cabe ser mais do que isso, contanto que seja sincero! Calco minha consciência sob a rispidez das provocações de meu próprio pensamento, e me desfaço, sempre que poço, em prosa, poema, ou silêncio.

Encho meu copo. O vinho esvaindo-se remete as coisas que se esgotam com o declínio da noite. Todos os meus pensamentos se tornam mortos ao ocaso das estrelas, e consumando-se a manhã, me tornarei exangue, vazio, tão vivo quanto são as folhas descaídas do outono, e tão seco quanto elas torna-se o meu verbo. Minhas palavras são acrescentadas como as flores que levam aos túmulos, e certamente as pessoas serão tão gratas pelo que escrevo quanto os cadáveres são pelas flores que adornam suas sepulturas. Nenhuma morte é narrada, morremos no silêncio. E impossivelmente lúcidos, em um momento autêntico de solidão, sentimos ruborizar-se nosso espírito em meio ao real significado de nossas vis contribuições para o “bem da humanidade.”.

E deus segue justo, absoluto e onipotente, e os homens escrevem a sua história com a própria merda.