hora do angelus

HORA DO ANGELUS

Ela pediu-lhe que ficasse. Pôs-se jovem, perfumada. Colocou ousadia nos seios, um decote provocante. Ele disse não quero. Não quis ficar.

Ela deitou-se junto. Ofereceu-lhe um cantinho macio, almofadas, travesseiro, ares refrigerados. Envolveu-o com as pernas e os braços. Na cozinha, junto à mesa, ele a olhou e disse que não. Não quis ficar.

Ela falou, insistiu. Prometeu-lhe tudo, comida e água, casa, presentes, anéis e fama. Prometeu-lhe agasalho, carinho, amor sem fim. Não, não quis.

Ela retocou os cabelos, pintou-os de cinza-ouro. Postou a voz, deu-lhe acentos roucos e sussurrantes. Disse meu amor com lânguidos timbres. Uivou como loba recém nascida. Algumas vezes até gargalhou, nervosa. Mas, ele não quis nada.

Ouro, prata, roupas finas. Não e não, recusou tudo. Não quis ficar.

Ela implorou. Aprofundou o decote. Lambeu e mordeu os lábios com força. Retocou o batom. Perfumou-se, usou essências orientais. Sombreou os olhos castanhos, sombras pretas, verdes, azuis, sombras de todas as nuances. A cada nuance, a cada tonalidade de batom, a cada nova essência de perfume, ele disse somente não. Não quis nada. Iria embora.

Ela pediu, chorando, que ficasse. Ofereceu seu corpo para esquentar o corpo dele. Daria sua respiração para que ele respirasse. Boca a boca, meu amor. Ele falou que não, não queria. Não, não e não. Não precisava daquilo. Não quis ficar.

Ela se prostrou, desesperada. E blasfemando, bradou aos quatro cantos do mundo: Onde estão meus atos falhos? Não obtendo respostas, de repente adormeceu. E, dormindo, envelheceu. Prendeu a voz sussurrada, os desejos impossíveis. Prendeu os sorrisos parvos e as gargalhadas insanas. Parou de respirar. E morreu.

Naquele momento, estaria completando oitenta e quatro anos de idade. O relógio da matriz executou seis badaladas, hora do ângelus. Ave Maria gratia plena.

Dôra Limeira

dôra
Enviado por dôra em 10/11/2005
Código do texto: T69434