Onde está, mulher?

Debaixo do pé de amora, em um gramado que dá acesso ao bairro da região, a mulher aguardava na cadeira de rodas motorizada, a filha garimpar algumas frutas da árvore de amora. A árvore era baixinha, permitia o alcance das mãos da menina nos galhos mais baixos.

Havia conseguido, depois de uns quinze minutos, colher umas quatro amorinhas maduras.

Na ocasião, aproxima uma senhorinha para um papo, tinha corpo apequenado, olhinhos puxados, mistura de baiano com japonês, e mais alguma outra raça, era a brasileira mexida na consanguinidade.

No jeito de andar, gesticular, sorrir, ponderar a conversa, trazia na personalidade a sombra de uma ancestralidade oriental que predominava.

Iniciou a conversa com “boa tarde”. Queria estabelecer o monólogo, trazer para fora o que doía dentro.

A interlocutora captou a necessidade, depois de dizer poucas palavras, silenciou para que a velhinha expressasse. Desabafou:

___Sabe moça, tenho setenta e dois anos, tive três filhas e um menino, fui faxineira a vida toda, vivo com meu marido e um neto.

Neste ano, na data do meu aniversário, não recebi nenhum telefonema de feliz aniversário, ou até mesmo uma visita de filho. Nenhum, moça!

A interlocutora respondeu que não era somente dela que havia ouvido reclamações neste sentido, outros idosos haviam reclamado do abandono afetivo por parte de seus parentes, incluindo filhos.

A senhorinha continuou:

___Saí um pouquinho fora de casa, deixei meu velho dormindo no sofá, estava sozinha. O único gosto que tenho é assistir às minhas novelas, mas ultimamente ele tem reclamado que gasta muita energia.

Indo a esquina de casa, vi você aqui com a menina, quis me aproximar para conversar um pouco. Minha neta ligou para mim pedindo dinheiro para pagar conta na loja de roupa, ligam para mim somente para pedir dinheiro, nunca para saber como estou.

A mulher, sem saber o que dizer, buscando levar consolo para a idosa, disse:

___Minha senhora, você gosta de ler?

Ela prontamente respondeu:

___Sim!! Amo ler!

Então, qualquer dia a senhora passa em casa, exerço o amadorismo da escrita, paga somente o valor que paguei pela impressão do livro.

Ficou muito feliz, respondeu:

__Que delícia, posso ir buscar agora um para ler? Depois eu levo o dinheiro!

A mulher respondeu que sim. Dirigiram até a casa da escritora. Chegando, recebeu o livro e foi embora; disse que iria lê-lo, voltaria para adquirir outro.

Minutos depois, a campainha toca, era a senhorinha novamente com o livro nas mãos. Estava nervosa, sua expressão era de tristeza e desconsolo. Disse:

___Minha senhora, meu esposo disse que não irá dar o dinheiro para pagar o livro, tome de volta.

A escritora insistiu, disse que era de presente, se ela não ficasse com ele, ficaria muito triste.

Mas a senhorinha estava irredutível, não quis ficar com o livro. Devolveu-o a escritora, partindo.

Que desperdício de vida!

Mulher! Mãe! Idosa!

Alma!? Onde está? Como irá desta para outra?

Que desperdício de vida!

Não é vista, reconhecida, amada, pelos outros, nem por ela mesma!

Desperdício de vida!

O que esta quarentena quer ensinar-nos?

Márcia Maria Anaga
Enviado por Márcia Maria Anaga em 29/05/2020
Código do texto: T6962160
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