O meu relógio biológico vive desatualizado. Não adianta esperá-lo para despertar no horário combinado mentalmente. Aliás, quando me aventuro, passo a noite tendo lapsos desesperadores, acordando de 30 em trinta, e perdendo a hora no fim. Então sou adepta da rotina com despertador externo e disciplina desde acordar até dormir. Exceções quando o relógio não desperta e tenho que contar com a colaboração do meu vizinho, ouvindo Roberto Carlos, e se não fosse ele, decerto estaria em audiência particular com Morpheus até o momento. Cortinas com blackout torturam a natureza que insiste em entrar por uma fresta, antes isso.
Mas o vizinho hoje está meio cabisbaixo, soube ontem que completa 87 anos e não vai ter festa, pela primeira vez. A família mora distante, filhas em São Paulo, filhos em BH e Portugal, e o casalzinho que fez seu ninho aqui em frente, vive sozinho. Se não fosse sua certidão de casamento jamais acreditaria em sua idade. Dirige como se fosse um menino, teve três AVC’S, tem marca-passo, aneurisma cerebral e é asmático. Nunca reclamou da saúde,  já eu, nasci “descadeirada”, alérgica e mal humorada!
Toda vez que ele se senta no banquinho da varanda minha mente extrapola no quesito criatividade para dar vazão a uma linda imagem que carrega em si uma história de vida em fios finos de algodão acinzentados, soprados pelo vento, naturalmente, como se fosse cena de um filme.
Quantos anos são necessários para entendermos o real valor da vida? Passamos mais da metade correndo atrás de uma segurança financeira e por que não, por alguns minutos de fama, perdendo cabelos e tempo na maratona que nos leva a ascensão tão almejada.
Cada olhar do vizinho tem um peso inesgotável das ausências, das dores disfarçadas, dos risos contidos, das tortas não partilhadas, dos filhos que cresceram em meio ao furacão em busca da “vida melhor”: médico, engenheiro, farmacêuticos são... Mas a distância é inevitável!
Enquanto ouve Roberto Carlos, acaricia os cabelos e as mãos trêmulas de sua esposa Clara e nos intervalos, envolve o cachorrinho poodle toy numa toalha felpuda. Entre uma abordagem e outra, daqueles que na rua passam, escolhe algumas pra justificar, entre elas, a “boa vida” tão apontada pela maioria inquisidora.
Entre um disco e outro (o vidro permite a visão de uma vitrola antiga e dezenas de vinil), se levanta e olha para infinito que cabe em sua varanda, puxa o ar e parece agradecer com um gesto de reverência.
Tudo se repete como se fosse um protocolo até o fim da tarde, quando os netos adentram o portão aos gritos e o olhar triste e perdido, dá lugar a esperança. Desde o início do isolamento social o ato se repete, mas impreterivelmente às 17:30 ele recolhe a toalha, pega o cãozinho e olha para trás como se algo faltasse, fecha a porta de vidro e fica por uns 20 minutos, observando o portão.
A solidão por ele vivida, não se distancia daquela que milhões de idosos vivem nesse delicado momento de pandemia. A tristeza assistida por um vidro é também a angústia imposta por uma inércia social causada por um vírus invisível a olho nu e avassalador na transmissibilidade.
Daqui da minha janela, de frente para ele, num gesto afoito e desproporcional, aceno gritando e atraindo os olhares julgadores dos que caminham pela rua:
- Seu Jorge, parabéns! Eu não me esqueci do seu dia! Sinta o meu abraço que é pivete e pula muro. Nós te amamos muito! Mas podia colocar um Pink Floyd nessa vitrola aí? 
Ele surpreso, abre a porta de vidro, faz um gesto de coração com as mãos, e abaixando a máscara até o pescoço esboçou um sorriso, enquanto acenava com olhos mareados.
- Vai passar, seu Jorge! Vai passar...
... o que não vai passar são as feridas de uma solidão que ataca feito arma perfurocortante! Quem tem coração entende. Mas nem todo mundo está pronto pra essa prosa...
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 30/05/2020
Reeditado em 31/05/2020
Código do texto: T6962393
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