Tempo

São cinco da matina.Frenético, o despertador dispara.O filho levanta-se. Cansado de sono, molha o rosto e segue sua aventura rotineira.

A chaleira apita e logo o café cheira doce.A mesa posta é singela, e, por isso, farta. Como de costume, tudo é corrido e o tempo não dá tempo, insiste em correr o tempo todo.A saída torna-se apressada. O aprendiz corre em direção ao ponto de ônibus.

De súbito, a mãe se lembra do seu esquecimento e avança em direção ao portão. Grita-o, com doçura.De volta ao ponto de partida, ofegante, recebe a sacola esquecida. Aproveita-se a tutora e emenda o beijo omitido pela pressa.

Com os lábios na testa e com a marca de dedos protetores nos seus, retorna sua jornada de corredor.Alcança o ônibus. Com custo, consegue um espaço entre pessoas já sabidas de olhares mudos e semblantes sofridos.

Na venda da movimentada avenida, o senhor toma o seu café tranquilo; café amargo por causa da saúde. Alimenta-se devagar, não se preocupa com a hora. Não tem relógio.Sua memória o leva à sua juventude, dos afetos perdidos no tempo. Sorri nostálgico do tempo em que saboreava café doce. Bota o troco no bolso das calças.Devagar são seus passos...

A estudante antevê e alerta. O cão de rua faz o mesmo. Em vão...O velhinho desatento...A freada brusca é inevitável. Sacoleja tudo que está dentro e até o que está dentro de dentro. Corações vão do centro ao norte.No chão o embrulho delicado e a sacola rasgada. Pela testa o sangue escorre, tinge o beijo de vermelho. Tudo fica doído e escuro...

O ar quente estava frio, o dia claro estava cinza. O silêncio se fez presente: no caminhar dos passos imprudentes, nas moedas atiradas no asfalto, no latido incontido do cão, na comoção da estudante, no pisar intuitivo no pedal, na prenda jogada ao chão...O silêncio do tempo...

Acorda ainda zonzo, sem saber o que se passou.Cambaleante, desce do ônibus. Vê o senhor se levantando com a ajuda da estudante. Faltou mãos para confortar tantas dores pelo corpo já combalido pela idade.Por um instante divino os dois atores se olham e instintivamente se cumprimentam.Neste momento, a fissura na qual passa a areia desobstruiu-se e a ampulheta voltou a marcar o tempo.O tempo que separa a distração da atenção; da pressa ao planejamento; da vida à morte. Do café doce ao amargo...

Kiko Soares
Enviado por Kiko Soares em 04/06/2020
Código do texto: T6967555
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